terça-feira, 14 de abril de 2015

Carta a um fantasma



Na semana passada, celebrou-se o dia dos irmãos. Pensei muito na minha irmã - ou senti-a, não sei - mas, entre escrever ou não escrever sobre isso, acabei por não querer escrever sobre um fantasma.

A minha irmã morreu ao meu lado, na barriga da minha mãe. Deve ter desistido da viagem ou acreditado que eu era menina para fazer isto sozinha. Odeio-a por isso. 

Dizem os psicanalistas que a relação original é a do bebé com a mãe, mas eu acho que a minha relação original foi a que tive contigo. Ensinaste-me a perder logo antes do primeiro grito, que custou a sair. Ainda hoje custa. Ensinaste-me a ficar sozinha sem que o tivesse pedido. Ensinaste-me a esconder metade do que sou porque te foste embora. 

Quando andava na escola e sabiam de ti, perguntavam-me "Sentes a falta dela?" e eu dizia "Não, não sinto a falta de uma coisa (irmã, nem lhe chamava irmã) que nunca tive!" E era assim. Assim era eu, meia desligada, meia anestesiada nas minhas relações, sempre meia. Quando me perguntaram se gostava do primeiro rapaz que gostou de mim, disse logo "Não!" Ainda me lembro desta conversa e do meu ar tão orgulhoso quanto amedrontado... Ensinaste-me a não assumir nada do que sinto porque não se assume sentimentos por fantasmas ou por pessoas que "nunca tive".

Tenho uma propensão para me ligar ao invisível, para desenvolver empatia e telepatia naturalmente, o que faz com que consiga chegar aos outros com tanta facilidade quanto dificuldade. Sinto o que não dizem, sinto o que sentem, sinto o que não são capazes de sentir, empresto a minha alma e ando com outras almas por aqui entranhadas em mim. 

Quando a médica me disse que tinha de fazer um transplante de medula óssea e que não podia ser autólogo porque a minha medula já não seria capaz de se regenerar, a ideia de ter um dador que não fosses tu pareceu-me primeiro irónica e depois ridícula. De alguma forma, lá estava eu a precisar de ti depois de uma vida inteira a dizer que não, embora por esta altura já soubesse que sim (muitas horas de terapia, a partir pedra). Lá estava eu a não ser suficiente.

Mas a verdade é que fui capaz uma vez, depois de uma travessia na incubadora, distante do mundo, a que sobrevivi. E, se tinha sido capaz uma vez, ia ser capaz outra vez, as minhas células iam ressuscitar, renascer e recomeçar, principalmente se estivesse disponível para renascer inteira, sem meias tintas. Apareceu um dador compatível e pensei: "Se não tenho as tuas células, não quero as de mais ninguém!" E foi aqui que descobri que afinal o meu "não" não era "não" e era "sim". Foi aqui que descobri que o ódio afinal era só amor. Sou muito demorada nestas coisas - 33 anos e um cancro! 

Ensinaste-me sobre distância, ensinaste-me a sentir confortável com a distância, a ter uma amiga em Aveiro e outra em Faro e saber que está tudo bem, que estamos juntas, porque o amor não tem tempo nem espaço. Ensinaste-me a acreditar em fantasmas, em impossíveis, em mim - "eu sou suficiente." Ensinaste-me também a desesperar com a distância, quando me sinto impedida de estar, de tocar, de beijar, de ficar, de ver. Às vezes é só isso: gostava de te ter podido ver e odeio todas as pessoas que me impedem de o fazer quando preciso. Mas já falhei a tantas quando precisavam.

Assim, a minha vida é resgatar vidas de alguma maneira, o que não fiz contigo. Peço-te ajuda e sei que mexes os cordelinhos aí de onde estás. Ensinas-me a deixar ir, a respeitar o caminho de quem não quer estar, às vezes bem demais, às vezes a convidar as pessoas a ir, a não ousar intrometer-me nas suas vidas e a querer que sejam felizes sem mim. Ensinas-me a respeitar o caminho de cada um porque tive de aceitar que o teu não era ao meu lado. Ensinas-me a aceitar a morte como um caminho diferente e só agora me sinto verdadeiramente a lidar com a vida. 

Continuo a odiar-te mas a não negar o amor. Ainda estou a duvidar se publico isto. Ainda estou a duvidar; a minha vida é duvidar, mas como disse ontem o Pe. Nuno: "Duvidar não é pecado. É mais pecado ter certezas." E as certezas que tenho vêm de ti, das coisas que sei só porque as sinto, sem saber como.

Estás sempre comigo, mas às vezes só queria que estivesses realmente, com pele e osso e afins. É pecado isto? Continua a guiar-me o caminho quando não faço a mínima ideia do que ando a fazer. É o mínimo. Sei que estás comigo. Mas, convenhamos, não se faz.   

Se deste a vida por mim, obrigada. Continuo a achar que havia lugar para duas... E obrigada por me teres iluminado o caminho para tomar a decisão de ser feliz e me reconstruir, fazendo pontes com os outros e deixando-os fazerem parte de mim. Ajuda-me a encontrar pessoas na minha vida que não abandonem o barco. Ajuda-me a entrar no barco. Ajuda-me a querer fazer a viagem e talvez a encontrar um dador compatível que não sejas tu para me acompanhar. Ajuda-me a acreditar. Ensina-me a amar. 

É o mínimo...


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