quarta-feira, 24 de agosto de 2016




Quando estamos envolvidos no drama das emoções, torna-se difícil apreciar a vida como ela merece ser apreciada: de coração aberto e agradecida. Tenho-me sentido louca desde que deixei de ter noites reparadoras mas reúno aqui, em fotografias, alguns momentos especiais, aqueles que me trazem de volta a minha essência e me ajudam a relembrar de onde venho. Os mergulhos deste ano foram imprescindíveis para energizar. A felicidade mora nos sentidos, mesmo quando estes, por vezes, se entorpecem. Ajudam um banho de mar e pessoas que vos arranquem sorrisos para tudo se tornar mais leve. Porque é. Nós é que complicamos.

Algarve, 2016

segunda-feira, 22 de agosto de 2016


Parte I

Comecei este blog numa fase ascendente, numa fase borboleta, cheia de sonhos e de esperanças para reconquistar a vida, como se estivesse nas minhas mãos provar que era merecedora da oportunidade de reconstruir, re-viver. Disse tantas vezes ao J. quando ele me perguntava: "Mas eu mereço?", na fase da nossa relação em que eu era muito mais entusiasta e ele nem tanto: "Se te está a acontecer, é porque mereces!". Eu sentia que tinha decidido que ia ser feliz e que a minha vontade de o ser valia a dobrar. Eu não queria saber do resto, da indisponibilidade (dele); queria amar e voltar a sonhar. 

Mas re-viver é repetir e repetir era tudo o que eu não queria. Queria criar, recomeçar, fazer diferente. Achava que bastava ser honesta e verdadeira, dia após dia, que tudo ia correr bem porque essa coisa da honestidade num relacionamento não havia de ser uma coisa assim tão difícil... honestidade de sentimentos!

À medida que uma pessoa vai entrando na nossa vida, no nosso espaço vital, essa coisa da honestidade torna-se cada vez mais difícil, porque é onde erguemos muralhas para não expor a vulnerabilidade, a fragilidade. E a maior muralha é a do orgulho, a que nos impede de dizer que a outra pessoa nos desarruma a casa simplesmente por estar ali, com a sua forma diferente de estar e de ser, com os seus medos e os seus sonhos. Nos afecta. Afectivamente nos desembrulha e, tantas vezes nos vemos embrulhados no outro, que nos vamos esquecendo de quem somos... para onde vamos...

Já sentia que o meu espaço de segurança tinha sido posto em causa pelo cancro e pelos internamentos e tratamentos sucessivos, através dos sintomas de ansiedade que foram aparecendo à medida que fui voltando a lidar com os desafios de quem vive, a necessidade de acertar, o medo de falhar, o luto do que tinha sido, a aceitação do que era no momento presente. Só não sabia que isso se ia estender a um relacionamento afetivo até o vivenciar, ano e meio depois do cancro. 

De repente, achas que aprendeste a lidar com o inesperado, com a falta de garantias, com o não saber o que vem a seguir, com o medo, com o lado traiçoeiro da vida, com as coisas menos boas que afinal não são assim tão más e, sobretudo, contigo mesmo, com os teus defeitos e com a tua versão assustada. O que pode ser pior do que o medo da morte? O medo de abandono, o medo da perda, o medo de falhar, o medo de que não gostem de nós? Pfffff... Mas eu descobri que estes medos menores podem ser muito mais assustadores do que o medo da morte porque a morte, ao menos, leva-te; os outros trazem-te para um patamar de exposição e de vulnerabilidade que te retira forças enquanto vives, porque nunca te ensinaram a ver a vulnerabilidade como uma força. 

Ensinaram-nos a competir e, como tal, nunca podes estar vulnerável porque vais perder. Mas competir é olhar para o outro como uma ameaça e viver, permanentemente, em modo luta/fuga. Num relacionamento, isto traduz-se em enfraquecer o outro não lhe dando garantias ou/e mostrar-se forte para vencer, para não perder o controlo, para ficar por cima. Cada um faz isso de formas diferentes, com conteúdos mais ou menos diferentes e resultados idênticos. O medo da morte é menos ameaçador porque é mais fácil de assumir. Todos os outros aparecem disfarçados em jogos de palavras que escondem mais do que mostram, porque é muito mais difícil assumir que se tem medo da entrega, de não ser capaz, de não ser suficiente bom para o outro, de falhar, de não cumprir os desígnios que o amor, um relacionamento ou um projeto de vida supostamente exigem. Não nos ensinam a colaborar, a cooperar, a dar as mãos num caminho aberto, a construir em conjunto... a deixar que a vida se revele. Isso aprende-se com a experiência, com o crescimento, com a maturidade. E desaprende-se também, para voltar a aprender.

Parte II

O meu maior MEDO depois do cancro era o de não conseguir resgatar a minha vida "normal", o que também incluía não ser capaz de cumprir os tais desígnios que ter mais uma pessoinha ao meu lado na montanha-russa poderiam trazer. Isto incluía, não só as expectativas dessa pessoa, mas, principalmente, as minhas. E aqui importa salientar que as expectativas vêm sempre minadas daquilo que a sociedade diz que está certo, do que nos contaram, do que os nossos pais nos mostraram, do que vemos nos filmes, do que os outros dizem e esperam, dos que dizemos para nós próprios. 

Ter um cancro (fazendo os tratamentos convencionais) aos 32 anos pode deixar-te condicionado a vários níveis, pelo menos, até aprenderes a lidar com as limitações como mudanças impulsionadoras de outras coisas e não como barreiras. Que pessoa vai ficar e não se vai assustar com a minha "bagagem"? E as alterações no meu corpo? Será que vou ser capaz? Quem é que me vai compreender? Será que posso ter filhos? E que quero eu depois de tudo isto? 

Conheci o J. numa palestra sobre cancro, pelo que teria a certeza de que a aceitação da doença, à partida, não seria uma questão. Mas, quando temos medo, vamos atrair esses medos e, pior, boicotar a vida de forma a que esses medos se materializem. E o J. veio mesmo mostrar-me todos os meus medos e todas as minhas feridas no campo afectivo. O J. veio espelhar tudo aquilo que eu temia e, mais, veio relembrar-me de coisas antigas, da minha infância, do amor ferido, do amor que exige, do amor que nunca chega, do amor insuficiente, do amor que carece, do amor de gaiola, do amor a medo, do amor a metro, do amor mudo, do amor surdo, do amor sem-abrigo, do amor impossível. Porque, quando temos medo, escolhemos uma pessoa que nos faça passar por tudo aquilo que mais tememos e fazêmo-la passar por aquilo que mais teme; escolhemos uma pessoa que nos obrigue a repetir a história, que nos leve a confirmar as nossas teorias de incapacidade para amar e ser amado. 

Mas o maior inimigo do amor é o julgamento, é pensar sobre ele em vez de o viver, de o sentir. Porque é pensar que nos faz premeditar, calcular ações, julgar atitudes sob o nosso ponto de vista. Tantas vezes julguei as atitudes do J. como não amorosas. Tantas vezes ele premeditou as dele para eu não me sentir assim ou assado. Tantas vezes me inibi de manifestar o que sentia por julgar os meus próprios sentimentos como exagerados ou como projeções dos meus próprios medos. É que nós temos a ilusão de que só o que dizemos é que passa para o outro, mas o que não é dito passa mais e muito mais depressa! O inconfessável assume várias formas que levam o outro a sentir tudo mas sem saber bem o quê; a sentir tudo e a atribuir-lhe um sentido que normalmente é negativo; a sentir tudo e a inventar histórias, mesmo inconscientemente; a sentir tudo e a retribuir em atitudes que só visam o conflito, mesmo involuntariamente.

Aprendi a contentar-me e fui perdendo a minha força. Porquê? Porque fiz sempre um julgamento sobre a forma de amar do J. à luz da minha experiência, à luz do que é expectável, à luz do que é suposto. Dei por mim a cavar um poço de re-sentimentos, sentimentos repetidos que me falavam de insegurança, de não-suficiência, de carência, de medo. Medos antigos atualizados aos 35 anos. Os mesmos. Trazidos pelos 26 anos dele. Os mesmos que habitavam nos meus 26, exacerbados pelas vivências de mais 9 anos, não propriamente idóneos.

Parte III

Por mais cancros que se atravessem na minha frente - e outros tantos males que aterrorizam o mundo - é muito fácil cair na ilusão do controlo. Não controlei a minha vida quando adoeci, não controlei a realidade de forma a que o meu pai não adoecesse ou seguisse o caminho que me parecia correto, não controlei o amor do J. Como é que ele não se apaixona perdidamente por mim? Não é óbvio que é isso que tem de acontecer??? Como é que ele não me diz que tem saudades minhas, que me ama loucamente e que vamos ser muito felizes, contra tudo e contra todos?

Não controlamos nada, muito menos os outros! No últimos ano, adoeci várias vezes e fui-me sentindo esgotada, cansada, muito longe da Rita que iniciou este blog. Longe da criatividade, do amor, da saúde, da energia, da alegria. Os ressentimentos (ou re-sentimentos) foram-se transformando em bichinhos do mal e, à medida que as forças se iam perdendo, os medos iam ganhando força. Repetia muitas vezes que andava a viver a vida dos outros, a substituir colegas a nível profissional e a viver o projeto afectivo do J. Deixei de dormir. Deixei de sonhar. Não por gostar da noite, mas talvez, inconscientemente, por não querer acordar, ver a realidade como ela era e, principalmente, olhar para a pessoa em que me tinha transformado, 3 anos depois do cancro. Olhar e ver as marcas, as feridas, os sustos, os medos. Não adormecer para não ser apanhada outra vez adormecida, desprevenida. Não adormecer para não morrer todos os dias um bocadinho. Não adormecer para controlar, para ter tudo sob controlo. Para o J. não desaparecer. Para me manter viva. 

Cheguei às férias de Verão com uma insónia crónica e com uma alegada pneumonia. Fui panicando e abolindo todas as variáveis que podiam não estar em consonância comigo mesma, trabalho, relacionamento... Sozinha com o J. - ele cada vez mais assustado com a minha fragilidade mas, ainda assim, com uma estoicidade e uma resistência que mostram a coragem que ele consegue ser - atirei-lhe tudo para cima e fugi a sete pés. No sentido figurativo, que eu a correr sou uma mula! O mais importante é a minha saúde, era o que pensava para mim! Nem pensar que vou sacrificar a minha saúde por não estar a viver a MINHA vida! (O mais importante é tudo. Tudo é importante. Desde quando é que o amor é uma ameaça à integridade física e mental?)

A vida é sempre nossa, mesmo quando estamos a ceder aqui e ali, porque vivemos em sociedade e porque também existimos no outro. Por um lado, perder o controlo da minha saúde representa agora o último patamar de desconforto a que me permito. Por outro lado, eu sei que continua a ser o MEDO e a necessidade de controlo a comandar estes acontecimentos que sinto exactamente que não controlo. Só esse medo nos pode levar numa espiral descendente. 

Parte IV

Aprendi com o cancro que não somos o nosso corpo, o nosso trabalho, os nossos relacionamentos, os nossos sentimentos, os nossos pensamentos, as nossas coisas... Nada disto nos define, mas temos a oportunidade de manifestar o nosso potencial em todas estas áreas! O medo leva a que nos afastemos desse potencial. O amor é um salto de fé; é uma confiança na vida que nos traz tudo o que precisamos no momento em que precisamos; é abertura e receptividade; é aceitação e gratidão por todas as lágrimas e por todo o sofrimento que nos veio revelar ainda mais de nós mesmos; é responsabilidade.

Ao eliminar coisas e pessoas da minha vida, a inquietação não só permanece, como aumenta, porque a resposta não está no exterior! O confronto com o que fica é assustador, embora necessário. As memórias desordenadas assaltam o pensamento. As perguntas são mais do que muitas.

O medo afasta-nos da gratidão. A perda, por vezes, aproxima-nos. A fraqueza torna-nos humildes, capazes de pedir ajuda, colo, amor, o amor que não encontramos em nós. 

Regressar a este blog, com uma asa partida, é um ato de gratidão e de amor, mais do que de necessidade, mas também necessidade. Não sei o que transportam as minhas lágrimas, mas sei que o nosso corpo tem esta forma fantástica de se amar a si próprio, limpando e renovando a alma. Quantos dias são necessários até voltar a voar? Os que forem necessários. Quantos dias acalmam a saudade? Os que forem necessários. Quantos dias acalmam o medo? Os que forem necessários. Quantos dias acalmam o amor? Dia nenhum.

Aprendi com o J. a ver o amor nos pormenores, nas pequenas coisas, nas coisas diferentes. Aprendi a ver o amor na presença. Aprendi a ver o amor na diferença. Aprendi a ver o amor nos pequenos passos, nas pequenas conquistas. Aprendi a ver o amor na tristeza. Aprendi a ver o amor nos olhos assustados, nas mãos inquietas. Aprendi que ficar é amar. Aprendi que afastar também é proteger, amar. Aprendi que deixar ir é amar. Caso isto se ensine, quero acreditar que lhe ensinei um bocadinho a abraçar, física e metaforicamente. 

Ninguém nos protege de nós próprios. Amo-te sempre, mesmo quando não consigo. Para sempre. Mas, no todo o sempre, vou conseguir fazer melhor! 



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