quinta-feira, 27 de outubro de 2016


O processo de um doente oncológico acontece. Tem um antes, um durante e um depois. Há experiências que ficam, mudanças que se instalam, memórias que resistem, fantasmas que pairam e marcas que se sobrepõem a tantas outras circunstâncias da vida. Há muitas coisas que são difíceis de entender ou mesmo de captar da parte de quem nos acompanha, as falhas cognitivas, a ansiedade antecipatória, a gestão do impacto na vida real (a que se segue à surreal, durante os tratamentos), o stress pós-traumático, a hipersensibilidade (porque se passou por um processo de sensibilização perante vários estímulos) e, mais difícil, tudo o que não se vê mas que se vive internamente. 

No meu caso, posso dizer que, quando as coisas estão bem, estou perfeitamente segura do caminho que fiz e das coisas em que acredito. Quando a saúde treme, é o caos! Quando duvidamos, ficamos muito mais susceptíveis aos medos, à verdade dos outros, a afastarmo-nos de quem verdadeiramente somos, em qualquer campo da vida, porque a vida... quer assertividade. 

Três anos depois, ainda há algumas coisas que não voltei a fazer depois dos internamentos/tratamentos. Um dos meus truques para lidar com o caos é simplificar, porque a verdade é que esta vida de fazer mil coisas ao mesmo tempo, numa linguagem corriqueira, também queima neurónios a mais e a uma velocidade alucinante! Simplicar levou-me a uma regra-de-1-simples: tratar de um assunto (pendente) por dia / fazer uma caminhada por dia (enquanto não regresso à dança) / fazer um ritual de cura por dia - que inclui agradecer. O resto é bónus. O resto é focar-me no que continua a contribuir para o meu processo de cura mais alargada, para lá da doença, que passa pelo bem-estar e pela capacidade de usufruir da vida e das minhas capacidades em pleno. Se estas capacidades estão hipotecadas, vale a pena reconsiderar, reavaliar e recomeçar. Vale a pena parar e dizer que "Parar é viver!"

Ouvi a Fátima Lopes a falar, a propósito do seu novo site, do conceito de slow living. Venderam-nos essa coisa de fast-tudo mas, quando a vida nos traz violência, dor e terror - sob as mais diversas formas - estas variáveis passam a entrar na contabilidade do que o cérebro tem para processar e por isso o corpo paga e por isso a cabeça perde juízo. Daí que não adiante fazer poucas coisas se o cérebro continuar a mil, assim como não faz mal fazer muitas coisas se o cérebro estiver zen. É a informação que temos para gerir e para processar que conta, venha ela do exterior ou do interior. É a leitura que temos dessa informação que nos faz perspetivá-la como perniciosa ou valiosa. 

Mas - mensagem especial para todos os que me relembram que está tudo na atitude - é a memória celular que sabe a verdade, o que realmente preside no nosso inconsciente e ao qual é preciso atender. 

A semana passada voltei a fazer uma coisa relativamente simples (em comparação com a quantidade de coisas que já fiz na dança muito mais difíceis) e que representou uma conquista neste caminho: voltei a andar de bicicleta. As memórias das parestesias e da neuropatia nas pernas, apesar de ter recuperado completamente, reaparecem em várias situações, como quando desço uma rua, quando uso saltos, quando não consigo manter-me muito tempo em determinadas posições, quando o equilíbrio é desafiado. Por isso tinha medo de me pôr em cima de uma bicicleta outra vez e a minha condição era: chegar com os pés ao chão!

Já passaram três anos! Já não andava de bicicleta há muito mais tempo do que estes três anos, mas o que quero sublinhar é o processo, as coisas que vão sendo despertadas com novas ou renovadas vivências, coisas que pensávamos ultrapassadas e que ainda estão lá, coisas que também nos redirecionam para novos caminhos, provavelmente porque são esses novos caminhos que ansiamos descobrir.

Sinto que é um bom treino "ensaiar" a superação dos medos com atividades mais terra-a-terra, relativamente simples, porque há medos que resistem no tempo e no espaço e que muitas vezes remontam a tempos e espaços que não sabemos precisar. Quando começamos por tarefas simples e nos confrontamos com a irracionalidade dos nossos medos, torna-se material/evidente que as limitações são muito maiores dentro do que fora de nós. Os medos falam-nos de "incapacidades". O amor fala-nos de "capacidades em stand-by". A seu tempo e no meu tempo, o nosso tempo.

Baby steps - são 4 gatos de dois meses, para o caso de alguém estar interessado!


terça-feira, 4 de outubro de 2016


Já meti na cabeça que tenho de escrever todas as minhas ideias e todas as coisas que oiço que me inspiram, mas, de meter na cabeça até isso acontecer, vai uma grande distância. Quero escrever porque a memória já não é o que era e, entretanto, esqueço-me de que tenho de o fazer! Claro! 

Depois é dar por mim a fazer um esforço gigante para me lembrar e perceber que deixo que as minhas ideias caiam, se percam, até nunca mais. Ou até reaparecerem de outras formas. É tão difícil interiorizar verdadeiramente as mudanças e agir de forma adaptativa. 

No outro dia, numa sessão, eu estava eu muito constipada e a tossir muito, quando, a meio de um exercício que propus, uma aluna diz: "Não sei se a dança me faz bem ou não. Ainda não percebi." Eu propus que, sendo assim, o descobríssemos juntos: "Então vamos descobrir!" Não faz mal não saber, porque, mais dia menos dia, a descoberta revela-se. 

Nos últimos minutos, sem me aperceber, deixei de tossir. Na despedida, ela diz: "Já está melhor da constipação!" Fico surpreendida e ela esclarece-me: "Então, estava a tossir muito e já não está! Quer dizer que a dança faz bem!"

E é assim que as coisas se revelam, mais depressa ou mais devagar, em nós e tantas vezes através dos outros que nos assistem no caminho. Sem estarmos à espera. Nem tudo na vida se resolve numa hora - quase nada! - mas ouvia eu hoje na tv que "os milagres não se fazem a prestações"... Há um qualquer momento mágico que marca o ponto de viragem, um clique, um clique que não traz botão, um clique que simplesmente acontece, eventualmente com data e hora marcadas nas estrelas, mas que nunca se vai saber. E é aí que a expressão "quando menos esperares..." ganha verdadeiro sentido. Porque os milagres não se esperam; pedem-se e (a)guardam-se sem cobranças, sem desconfianças, sem pressas.




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