terça-feira, 8 de abril de 2014

InspirAção: "O Imperador de Todos os Males"


Sábado, 5 de Abril de 2014



A história do cancro contada por Siddhartha Mukherjee, médico, oncologista e investigador.

Transcrevo uma parte em que o cancro é interpretado à luz do inconsciente colectivo de uma sociedade que projecta os seus medos e os exterioriza inversamente numa linguagem somática. Escolhi esta parte porque, quanto mais desconstruo o bicho, mais me convenço de que o verdadeiro perigo reside nas características que lhe atribuímos e nas coisas nossas que projectamos nele - cancro, mais do que na mutação genética por si só. Tendo o cancro como implosivo e mortal, temos as células cancerosas num conflito entre o querer matar e o querer morrer e temos a vida por um fio.

Vou voltar a este livro e a explicar por que insisto tanto em relativizar o cancro. Não procuro a razão, procuro a perspectiva, para que não se tomem as coisas como absolutas. A ciência não tem como base ser absoluta, muito pelo contrário. E a minha perspectiva é a psicológica por paixão e formação. E aqui fica o excerto: 

"Quando uma doença se insinua de forma tão marcante na imaginação das gentes de toda uma era, muitas vezes tal ocorre porque essa doença exacerba um medo já latente nas mentes dessas pessoas. A sida tomou as proporções que tomou no imaginário das pessoas porque se tratava de uma geração inerentemente assombrada pela sexualidade e pela liberdade de que gozava. A Síndrome Respiratória Aguada (Pneumonia Atípica) desencadeou uma onda de pânico por causa da possibilidade de uma pandemia à escala global, numa altura em que a globalização e o intercâmbio social eram temas que preocupavam os ocidentais. Todas as eras moldam as doenças à sua imagem. A sociedade estabelece a correspondência entre os seus males clínicos e as suas crises psicológicas, como se fosse o protótipo do paciente psicossomático. Muitas vezes uma doença toca-nos numa "corda visceral" porque já temos essa corda a vibrar.

Foi o que se passou com o cancro. Nas palavras da escritora e filósofa Renata Salecl, "deu-se uma mudança radical na percepção do objecto do horror" na década de 1970, uma passagem daquilo que era externo para o que era interno. Na década de 1950, em plena Guerra Fria, o que atormentava os americanos era o medo da aniquilação por parte de elementos externos: as bombas e os mísseis nucleares, o possível envenenamento dos reservatórios de água, os exércitos comunistas e supostos invasores vindos do espaço. Consideravam que a ameaça à sociedade vinha do exterior. Os filmes de terror - os termómetros da ansiedade da cultura popular - apresentavam invasões alienígenas, a ocupação do cérebro por parasitas e corpos possuídos. (...)

Mas, no início da década de 1970, o foco da ansiedade - o "objecto do horror", como Salecl o descreveu - mudou, dramaticamente, do exterior para o interior. A podridão, o horror - a putrefacção biológica e a correspondente deterioração espiritual - tinham retornado ao interior do corpus da sociedade e, por extensão, ao interior do corpo humano. A sociedade americana ainda se sentia ameaçada, mas, desta vez, a ameaça vinha de dentro. Os títulos dos filmes de terror reflectiam esta mudança. Eram títulos como "O Exorcista" ou "They Came From Within".

O cancro era o supremo horror interno, a máxima expressão do inimigo nas entranhas das pessoas, uma célula salteadora que se gerava do corpo da própria vítima e o ocupava por dentro, um alienígena interno. Um colunista escreveu que a "Grande Bomba" tinha sido substituída pelo "Grande C": 

"(...) A morte já não vem sob a forma de um grande rebentamento, mas sob a forma de um tumor (...) O cancro é a obsessão das pessoas que sentem que a catástrofe pode não ser um instrumento de ordem pública com determinado objectivo, mas uma questão de descuido aleatório e acidental."

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