quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

À noite, na cidade, há sempre um sonho até ser dia*


Oiço pássaros aqui perto a cantar, galos ao longe a acordar. O dia começa antes de ter começado, porque o sol ainda não nasceu. O dia começa antes do anterior ter terminado porque ainda não dormi. Não fosse o cansaço e diria que se, durante a noite, a minha criatividade está ao rubro - é como se houvesse um entusiasmo qualquer que leva a que ideias se atropelem e que o cérebro não pare - então alguma coisa não estou a fazer bem durante o dia. 

Escrevi estas palavras a meio de uma insónia. Na verdade, a insónia foi um monstro enorme que ocupou muito tempo do meu 2016. Três anos depois de terminar os tratamentos, por causa da insónia, procurei apoio psicológico, que encontrei na Liga Portuguesa Contra o Cancro (LPCC), que presta serviços gratuitos de psico-oncologia (mais informações no site). Continuo a ir com uma frequência quinzenal. Entretanto, em 2017, quatro anos depois do diagnóstico, vou à primeira consulta de psiquiatria no IPO. Muito mais tarde do que é habitual, mas tudo comigo demora muito tempo! Na verdade, é a primeira vez na vida que recorro à psiquiatria! E o que quero eu dizer com isto? 

Quero dizer-vos que as coisas não terminam no dia em que terminam. Há um processo, há marcas, há trigger points, há feridas que vão abrir em determinadas alturas ou perante determinado estímulo. Há acumulação de experiências que podem ir sendo mais ou menos processadas e integradas. E há a fase em que tudo pode aparecer simplesmente porque o pior já passou. Se esse tudo se manifestasse na fase aguda do processo, não teríamos a mesma capacidade de ação, de sobrevivência.

Peçam ajuda - gosto de lhe chamar acompanhamento, porque é disso que se trata - e olhem de frente para os vossos próprios preconceitos. A saúde mental é um parente pobre em Portugal e a manifestação das emoções é julgada e reprimida. A fase das noites em branco já passou, mas o meu próprio médico de família dizia-me: "Mas está com boa cara!!!" 

Às vezes não está na cara nem está no dia. Mora cá dentro e acorda de noite. 

*canção da Anabela



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