quarta-feira, 14 de setembro de 2016


"Insecurity is the result of trying to be secure." (Allan Watts)

Há duas fases na vida em que eu sinto que a necessidade de perdoar surge com mais força - ou, simplesmente, surge: quando está tudo bem e quando está tudo mal! (Quando temos esta percepção porque, na prática, o bem e o mal coexistem.)

Talvez por isso seja mais genuíno quando está tudo, não "mais ou menos", mas mais e menos, sem grandes epifanias. O mais e menos não vem do desespero dos dias infernais nem do estado de graça dos dias paradisíacos; vem da normalidade que apazigua com momentos que destabilizam para nos pôr a mexer. O mais e menos não é "mais ou menos", "nem sim nem sopas", "é indiferente"... 

Quando as coisas me correm mal, confesso que sinto que não perdoar é uma verdadeira perda de energia, indiretamente uma perda também de muitas outras coisas que são contaminadas pela falta dessa energia: tempo, saúde, dinheiro, amor... É o mesmo que ficar com o carro atascado numa terra de mágoas. 

Quando as coisas correm bem, vive-se, não se quer saber de merdas. Pronto.

Posto isto, não se resolve nada na urgência. A vida requer paciência. Tenho percebido a importância de dormir desde que desaprendi de dormir. O tempo de dormir é o tempo em que tudo centrifuga por si só. Nem é preciso ir ao estendal que a roupinha já vem seca! Como nova!

Roupa suja é o que fica quando não se cumpre o ciclo da noite e do dia. E há o ímpeto de esvaziar, de fugir, de encarar, de resolver, de libertar, de entender, de controlar, de explicar... "Eles não sabem o que fazem...", dizia Jesus na cruz. É isso que eu sinto muitas vezes: não sei muito do que faço.

Podia ter escolhido para parafrasear o "Sei lá..." da Margarida Rebelo Pinto ou o Sócrates do "Só sei que nada sei.", mas não tinha a parte do "Perdoa-lhes (nos), Senhor..." que é a mais relevante na frase da cruz. Ontem telefonou-me a psicóloga da Liga Portuguesa Contra o Cancro e pergunta-me "É a Ana Rita Cruz??" Não, não sou a Ana Rita Cruz... mas parece! É impressão minha ou sou eu que ando mesmo CARREGADA?


Festival Lumina - Cascais









quinta-feira, 1 de setembro de 2016


Já tornei públicas as minhas insónias e resolvi deambular um bocadinho sobre as mesmas... O título deste post seria mais interessante em espanhol: Buscando el sueño.... porque a palavra sueño significa, ao mesmo tempo, sono e sonho. Entre muitas coisas, acredito que ande num processo de resgate de sonhos perdidos, tanto a nível pessoal como profissional. Assim que voltei à vida "real", agarrei-me às oportunidades que surgiram e agora comecei a fazer escolhas, a dizer não sem o sim à vista, a arriscar, por uma vida mais "decidida". Ainda a procissão vai no adro e o sono em parte incerta. Então pensei: vamos fazer isto ao contrário! A partir de hoje vou sonhar acordada e pôr sonhos no papel, sejam eles mais ou menos estapafúrdios. Vou chamar o sonho para chamar o sono porque o deus do sono, João Pestana, deve estar... de cama! 


quarta-feira, 24 de agosto de 2016




Quando estamos envolvidos no drama das emoções, torna-se difícil apreciar a vida como ela merece ser apreciada: de coração aberto e agradecida. Tenho-me sentido louca desde que deixei de ter noites reparadoras mas reúno aqui, em fotografias, alguns momentos especiais, aqueles que me trazem de volta a minha essência e me ajudam a relembrar de onde venho. Os mergulhos deste ano foram imprescindíveis para energizar. A felicidade mora nos sentidos, mesmo quando estes, por vezes, se entorpecem. Ajudam um banho de mar e pessoas que vos arranquem sorrisos para tudo se tornar mais leve. Porque é. Nós é que complicamos.

Algarve, 2016

segunda-feira, 22 de agosto de 2016


Parte I

Comecei este blog numa fase ascendente, numa fase borboleta, cheia de sonhos e de esperanças para reconquistar a vida, como se estivesse nas minhas mãos provar que era merecedora da oportunidade de reconstruir, re-viver. Disse tantas vezes ao J. quando ele me perguntava: "Mas eu mereço?", na fase da nossa relação em que eu era muito mais entusiasta e ele nem tanto: "Se te está a acontecer, é porque mereces!". Eu sentia que tinha decidido que ia ser feliz e que a minha vontade de o ser valia a dobrar. Eu não queria saber do resto, da indisponibilidade (dele); queria amar e voltar a sonhar. 

Mas re-viver é repetir e repetir era tudo o que eu não queria. Queria criar, recomeçar, fazer diferente. Achava que bastava ser honesta e verdadeira, dia após dia, que tudo ia correr bem porque essa coisa da honestidade num relacionamento não havia de ser uma coisa assim tão difícil... honestidade de sentimentos!

À medida que uma pessoa vai entrando na nossa vida, no nosso espaço vital, essa coisa da honestidade torna-se cada vez mais difícil, porque é onde erguemos muralhas para não expor a vulnerabilidade, a fragilidade. E a maior muralha é a do orgulho, a que nos impede de dizer que a outra pessoa nos desarruma a casa simplesmente por estar ali, com a sua forma diferente de estar e de ser, com os seus medos e os seus sonhos. Nos afecta. Afectivamente nos desembrulha e, tantas vezes nos vemos embrulhados no outro, que nos vamos esquecendo de quem somos... para onde vamos...

Já sentia que o meu espaço de segurança tinha sido posto em causa pelo cancro e pelos internamentos e tratamentos sucessivos, através dos sintomas de ansiedade que foram aparecendo à medida que fui voltando a lidar com os desafios de quem vive, a necessidade de acertar, o medo de falhar, o luto do que tinha sido, a aceitação do que era no momento presente. Só não sabia que isso se ia estender a um relacionamento afetivo até o vivenciar, ano e meio depois do cancro. 

De repente, achas que aprendeste a lidar com o inesperado, com a falta de garantias, com o não saber o que vem a seguir, com o medo, com o lado traiçoeiro da vida, com as coisas menos boas que afinal não são assim tão más e, sobretudo, contigo mesmo, com os teus defeitos e com a tua versão assustada. O que pode ser pior do que o medo da morte? O medo de abandono, o medo da perda, o medo de falhar, o medo de que não gostem de nós? Pfffff... Mas eu descobri que estes medos menores podem ser muito mais assustadores do que o medo da morte porque a morte, ao menos, leva-te; os outros trazem-te para um patamar de exposição e de vulnerabilidade que te retira forças enquanto vives, porque nunca te ensinaram a ver a vulnerabilidade como uma força. 

Ensinaram-nos a competir e, como tal, nunca podes estar vulnerável porque vais perder. Mas competir é olhar para o outro como uma ameaça e viver, permanentemente, em modo luta/fuga. Num relacionamento, isto traduz-se em enfraquecer o outro não lhe dando garantias ou/e mostrar-se forte para vencer, para não perder o controlo, para ficar por cima. Cada um faz isso de formas diferentes, com conteúdos mais ou menos diferentes e resultados idênticos. O medo da morte é menos ameaçador porque é mais fácil de assumir. Todos os outros aparecem disfarçados em jogos de palavras que escondem mais do que mostram, porque é muito mais difícil assumir que se tem medo da entrega, de não ser capaz, de não ser suficiente bom para o outro, de falhar, de não cumprir os desígnios que o amor, um relacionamento ou um projeto de vida supostamente exigem. Não nos ensinam a colaborar, a cooperar, a dar as mãos num caminho aberto, a construir em conjunto... a deixar que a vida se revele. Isso aprende-se com a experiência, com o crescimento, com a maturidade. E desaprende-se também, para voltar a aprender.

Parte II

O meu maior MEDO depois do cancro era o de não conseguir resgatar a minha vida "normal", o que também incluía não ser capaz de cumprir os tais desígnios que ter mais uma pessoinha ao meu lado na montanha-russa poderiam trazer. Isto incluía, não só as expectativas dessa pessoa, mas, principalmente, as minhas. E aqui importa salientar que as expectativas vêm sempre minadas daquilo que a sociedade diz que está certo, do que nos contaram, do que os nossos pais nos mostraram, do que vemos nos filmes, do que os outros dizem e esperam, dos que dizemos para nós próprios. 

Ter um cancro (fazendo os tratamentos convencionais) aos 32 anos pode deixar-te condicionado a vários níveis, pelo menos, até aprenderes a lidar com as limitações como mudanças impulsionadoras de outras coisas e não como barreiras. Que pessoa vai ficar e não se vai assustar com a minha "bagagem"? E as alterações no meu corpo? Será que vou ser capaz? Quem é que me vai compreender? Será que posso ter filhos? E que quero eu depois de tudo isto? 

Conheci o J. numa palestra sobre cancro, pelo que teria a certeza de que a aceitação da doença, à partida, não seria uma questão. Mas, quando temos medo, vamos atrair esses medos e, pior, boicotar a vida de forma a que esses medos se materializem. E o J. veio mesmo mostrar-me todos os meus medos e todas as minhas feridas no campo afectivo. O J. veio espelhar tudo aquilo que eu temia e, mais, veio relembrar-me de coisas antigas, da minha infância, do amor ferido, do amor que exige, do amor que nunca chega, do amor insuficiente, do amor que carece, do amor de gaiola, do amor a medo, do amor a metro, do amor mudo, do amor surdo, do amor sem-abrigo, do amor impossível. Porque, quando temos medo, escolhemos uma pessoa que nos faça passar por tudo aquilo que mais tememos e fazêmo-la passar por aquilo que mais teme; escolhemos uma pessoa que nos obrigue a repetir a história, que nos leve a confirmar as nossas teorias de incapacidade para amar e ser amado. 

Mas o maior inimigo do amor é o julgamento, é pensar sobre ele em vez de o viver, de o sentir. Porque é pensar que nos faz premeditar, calcular ações, julgar atitudes sob o nosso ponto de vista. Tantas vezes julguei as atitudes do J. como não amorosas. Tantas vezes ele premeditou as dele para eu não me sentir assim ou assado. Tantas vezes me inibi de manifestar o que sentia por julgar os meus próprios sentimentos como exagerados ou como projeções dos meus próprios medos. É que nós temos a ilusão de que só o que dizemos é que passa para o outro, mas o que não é dito passa mais e muito mais depressa! O inconfessável assume várias formas que levam o outro a sentir tudo mas sem saber bem o quê; a sentir tudo e a atribuir-lhe um sentido que normalmente é negativo; a sentir tudo e a inventar histórias, mesmo inconscientemente; a sentir tudo e a retribuir em atitudes que só visam o conflito, mesmo involuntariamente.

Aprendi a contentar-me e fui perdendo a minha força. Porquê? Porque fiz sempre um julgamento sobre a forma de amar do J. à luz da minha experiência, à luz do que é expectável, à luz do que é suposto. Dei por mim a cavar um poço de re-sentimentos, sentimentos repetidos que me falavam de insegurança, de não-suficiência, de carência, de medo. Medos antigos atualizados aos 35 anos. Os mesmos. Trazidos pelos 26 anos dele. Os mesmos que habitavam nos meus 26, exacerbados pelas vivências de mais 9 anos, não propriamente idóneos.

Parte III

Por mais cancros que se atravessem na minha frente - e outros tantos males que aterrorizam o mundo - é muito fácil cair na ilusão do controlo. Não controlei a minha vida quando adoeci, não controlei a realidade de forma a que o meu pai não adoecesse ou seguisse o caminho que me parecia correto, não controlei o amor do J. Como é que ele não se apaixona perdidamente por mim? Não é óbvio que é isso que tem de acontecer??? Como é que ele não me diz que tem saudades minhas, que me ama loucamente e que vamos ser muito felizes, contra tudo e contra todos?

Não controlamos nada, muito menos os outros! No últimos ano, adoeci várias vezes e fui-me sentindo esgotada, cansada, muito longe da Rita que iniciou este blog. Longe da criatividade, do amor, da saúde, da energia, da alegria. Os ressentimentos (ou re-sentimentos) foram-se transformando em bichinhos do mal e, à medida que as forças se iam perdendo, os medos iam ganhando força. Repetia muitas vezes que andava a viver a vida dos outros, a substituir colegas a nível profissional e a viver o projeto afectivo do J. Deixei de dormir. Deixei de sonhar. Não por gostar da noite, mas talvez, inconscientemente, por não querer acordar, ver a realidade como ela era e, principalmente, olhar para a pessoa em que me tinha transformado, 3 anos depois do cancro. Olhar e ver as marcas, as feridas, os sustos, os medos. Não adormecer para não ser apanhada outra vez adormecida, desprevenida. Não adormecer para não morrer todos os dias um bocadinho. Não adormecer para controlar, para ter tudo sob controlo. Para o J. não desaparecer. Para me manter viva. 

Cheguei às férias de Verão com uma insónia crónica e com uma alegada pneumonia. Fui panicando e abolindo todas as variáveis que podiam não estar em consonância comigo mesma, trabalho, relacionamento... Sozinha com o J. - ele cada vez mais assustado com a minha fragilidade mas, ainda assim, com uma estoicidade e uma resistência que mostram a coragem que ele consegue ser - atirei-lhe tudo para cima e fugi a sete pés. No sentido figurativo, que eu a correr sou uma mula! O mais importante é a minha saúde, era o que pensava para mim! Nem pensar que vou sacrificar a minha saúde por não estar a viver a MINHA vida! (O mais importante é tudo. Tudo é importante. Desde quando é que o amor é uma ameaça à integridade física e mental?)

A vida é sempre nossa, mesmo quando estamos a ceder aqui e ali, porque vivemos em sociedade e porque também existimos no outro. Por um lado, perder o controlo da minha saúde representa agora o último patamar de desconforto a que me permito. Por outro lado, eu sei que continua a ser o MEDO e a necessidade de controlo a comandar estes acontecimentos que sinto exactamente que não controlo. Só esse medo nos pode levar numa espiral descendente. 

Parte IV

Aprendi com o cancro que não somos o nosso corpo, o nosso trabalho, os nossos relacionamentos, os nossos sentimentos, os nossos pensamentos, as nossas coisas... Nada disto nos define, mas temos a oportunidade de manifestar o nosso potencial em todas estas áreas! O medo leva a que nos afastemos desse potencial. O amor é um salto de fé; é uma confiança na vida que nos traz tudo o que precisamos no momento em que precisamos; é abertura e receptividade; é aceitação e gratidão por todas as lágrimas e por todo o sofrimento que nos veio revelar ainda mais de nós mesmos; é responsabilidade.

Ao eliminar coisas e pessoas da minha vida, a inquietação não só permanece, como aumenta, porque a resposta não está no exterior! O confronto com o que fica é assustador, embora necessário. As memórias desordenadas assaltam o pensamento. As perguntas são mais do que muitas.

O medo afasta-nos da gratidão. A perda, por vezes, aproxima-nos. A fraqueza torna-nos humildes, capazes de pedir ajuda, colo, amor, o amor que não encontramos em nós. 

Regressar a este blog, com uma asa partida, é um ato de gratidão e de amor, mais do que de necessidade, mas também necessidade. Não sei o que transportam as minhas lágrimas, mas sei que o nosso corpo tem esta forma fantástica de se amar a si próprio, limpando e renovando a alma. Quantos dias são necessários até voltar a voar? Os que forem necessários. Quantos dias acalmam a saudade? Os que forem necessários. Quantos dias acalmam o medo? Os que forem necessários. Quantos dias acalmam o amor? Dia nenhum.

Aprendi com o J. a ver o amor nos pormenores, nas pequenas coisas, nas coisas diferentes. Aprendi a ver o amor na presença. Aprendi a ver o amor na diferença. Aprendi a ver o amor nos pequenos passos, nas pequenas conquistas. Aprendi a ver o amor na tristeza. Aprendi a ver o amor nos olhos assustados, nas mãos inquietas. Aprendi que ficar é amar. Aprendi que afastar também é proteger, amar. Aprendi que deixar ir é amar. Caso isto se ensine, quero acreditar que lhe ensinei um bocadinho a abraçar, física e metaforicamente. 

Ninguém nos protege de nós próprios. Amo-te sempre, mesmo quando não consigo. Para sempre. Mas, no todo o sempre, vou conseguir fazer melhor! 



terça-feira, 26 de julho de 2016



Há momentos da vida em que te sentes longe de tudo e de todos. Já questionei 30 mil vezes a minha capacidade para comunicar. Depois percebo que a capacidade de comunicar é também a capacidade de viver porque não se vive sem estabelecer laços e, voilá, comunicar. Depois também percebo que, se eu tenho o meu mundo, tu tens o teu e, como tal, já diz o povo que "cada um puxa a brasa à sua sardinha". Há momentos da vida em que te sentes fora do filme mesmo que estejas metido nele até ao pescoço. Quando saí do hospital e voltei a estar com "pessoas num ambiente não controlado", vulgo enfermaria, senti-me completamente deslocada, numa vida paralela que tinha ficado suspensa, enquanto a vida dos outros se desenrolava entre dramas apocalípticos - ai isto, ai aquilo - e muitas coisas boas das quais nem se apercebiam! Continuo a ter essa sensação de não pertencer, sobretudo quando não consigo que me entendam ou não consigo estabelecer limites entre mim e os outros, talvez por saber de coração que essa separação (entre mim e o outro) é artificial. Vejo-te, sinto-te. 

De várias conversas que tive nos últimos dias, retiro a ideia de que temos de ter estratégias para que as coisas dos outros - que não são nossas e que nos fazem mal - não nos afectem. Se há determinadas pessoas que fazem parte das nossas vidas, independentemente do contexto ser pessoal, familiar ou laboral, é bom que nos consigamos manter na nossa energia e não irmos atrás do registo dos outros quando este não nos faz bem. E pôr limites para que não nos agridam na nossa liberdade. A questão é que: tudo o que existe no outro - e que nos afecta - também existe em nós e, muitas vezes, parece ser exactamente o oposto, porque é apenas a sombra, aquela parte que não queremos assumir. Mas essa separação da sombra não deixa de ser uma ilusão. Se há sol, tem de haver sombra. Como ter a capacidade para fechar se não nos faz bem e para abrir ao outro quando nos convém? (Seria uma boa definição para desonestidade...) 

A única forma de nos livrarmos de todo o mal de que fala o Pai nosso que está no céu é com confronto, assertividade e escolhas mas, na maior parte das vezes, mudança. E por que não? Por que nos é tão difícil? Porque nós também somos o outro. Porque muitas vezes o outro é uma irmã, um irmão, uma mãe, um pai, um marido, um namorado, uma melhor amiga, uma pessoa que existe dentro de nós como uma extensão de nós próprios. Que permitimos que entrasse. E não será que, enquanto estamos em comunicação, em relação, o outro, naquele momento, não é sempre uma extensão de nós próprios, mesmo que pareça uma situação polarizada, que teimamos em chamar de disfuncional? Mesmo e, sobretudo, quando achamos que o problema está só no outro? Como nos ligamos sem pertencer? Como nos ligamos sem que nos pertençam? E não estou a falar de sentimento de posse; estou mesmo a falar de sentimento de proximidade, intimidade, sinergia. Como curar uma pessoa, um coração, um planeta sem isto?

Não é justo culpabilizarmo-nos por uma atitude de uma esposa, de um chefe ou de um irmão nos afectar porque, provavelmente, essa atitude, se veio de um lugar ferido, apenas pretende ferir ou apenas tem o alcance de ferir. Até o próprio poder alquímico do amor só pode ter lugar quando as feridas de ambas as partes se abrem ao outro. Caso contrário, não adianta porque, como eu dizia ontem, "quando um dos dois não quer, dois não dançam". E é mesmo difícil dançar em sintonia. E não é possível fazê-lo sem se tornar um só, uno! Por isso tantas vezes sentimos não sentir onde acabamos nós e onde começa o outro e vice-versa; quem é responsável do quê. Não há distância suficiente porque até essa distância é uma ilusão. 

É muito fácil o julgamento. Eu hoje toquei à campainha de um consultório e apareceu-me uma técnica furiosa porque a porta estava aberta e eu não tinha percebido. Não consegui que, na meia hora seguinte, aquela energia e aquele "virar de costas" não me deixasse com os nervos em franja. Há logo ali, naquele momento, da minha parte, uma incapacidade para entender o que se passa na vida daquela pessoa para aquilo a ter deixado tão indisponível e, da parte dela, uma incapacidade para entender que a outra pessoa pode falhar. A energia só mudou quando fui atendida por ela na consulta e se tornou numa pessoa simpática que estava a pensar na hora de almoço. Não tive vontade de abordar o choque inicial, mas senti que se estava a redimir e só quis despachar-me e fugir dali. Desempoderada por não escolher utilizar o meu poder pessoal dizendo-lhe que a atitude dela não contribuía para a saúde cardio-vascular dos doentes que iam até ela fazer exames ao coração! Escolhi, primeiro, ser vítima e, depois, partir para outra. Mas estas são situações simples, com pessoas que, provavelmente, vemos uma vez na vida. 

Está mesmo na hora de assumirmos que sentimos as coisas uns dos outros, que elas estão em nós e que não são muros nem fronteiras que nos vão proteger ou separar de alguma coisa. Cada vez o mundo grita mais isto! Claro que podemos, como dizem todos os livros de desenvolvimento pessoal, cercar-nos de pessoas que nos fazem sentir coisas boas e nos fazem ser a melhor versão de nós próprios mas, enquanto isso, continuamos a ser o bem e o mal porque todas as emoções residem em nós. A empatia só cresce com abertura. A abertura leva à sensibilidade. A sensibilidade leva ao amor e à dor. 

Não sei do futuro próximo. Não sei mesmo de nada. Reconheço o desespero que há no mundo e também dentro de mim, assim como reconheço as ondas de amor gigante que há no mundo e também em mim. Reconheço atos vindos do ego todos os dias da minha vida, tanto em mim como nas pessoas que estão ao meu lado ou passam por mim, pássaros feridos, asas partidas... 

Nunca tive a sensação de insegurança tão presente no coração. Na verdade, hoje estou a fazer um holter - exame cardíaco - para identificar arritmias que eu sei que vêm da instabilidade do meu mundo, interior e exterior. E o coração é tão sábio que vos digo que talvez o medo seja o que o ponha a bater mais depressa, mas os batimentos que disparam também nos dizem da força, da vida e do ímpeto para... qualquer coisa que escolhamos para a nossa vida. Nenhum batimento é aleatório.

Rezo para que as almas inquietas como a minha, por este mundo fora, usem o medo para agir pelo bem. Mas reconheço que é difícil porque a ferida pede vingança, inflingir sofrimento no outro, exercer o poder sobre este. E isto é triste. E anda muita gente triste e desesperada aos tiros aparentemente indiscriminados. Anda muita gente a fugir de sentir. Num mundo cada vez mais polarizado - entre os bons e os maus - não há outro caminho senão o do sentir... Tudo o que nos pede para fechar vai reforçar a separação. E, volto a dizer, a ilusão. Abrir expõe-nos ao risco e ao terrorismo das ações irreflectidas, bombas-relógio tão previsíveis como imprevisíveis. 

Eu sei que sou amor. Eu sei que tu és amor. Mas o amor não aparece na separação. Não existe na ilusão. E o pior é que anda meio mundo a achar que o amor é uma ilusão, quando é a única realidade. 

Não é gravidez! É um holter, aparelho que mede a frequência cardíaca durante 24 horas! Mas eu fico sempre orgulhosa do meu coração por continuar a bater, compassado ou descompassado!






quarta-feira, 29 de junho de 2016



Se o dia fosse noite, não teria medo do escuro.
Se a noite fosse dia, não teria medo da luz.
Se um monstro te faz tremer, faz-te mexer
Se um fantasma te faz temer, faz-te viver
Se a vida fosse morte, não haveria desconhecido.
Se a morte fosse vida, seria tudo igual. Banal.
Tudo seria pouco, nada seria muito. 
Tudo seria aquém do que poderia ser.
E ninguém veio aqui para metade viver. 
No auge da loucura, o medo perdura 
Para se perder de amores pela vida dura.
Amor é fogo que arde. O que arde cura.




segunda-feira, 20 de junho de 2016


Ouvi algures que a vida nos era emprestada. A certa altura, teremos de a devolver. E é assim com tudo o que vamos tendo ao longo da vida. Vamos tendo. Na verdade, ter seja o que for é uma ilusão à qual nos agarramos por medo, medo que nos falte amor, dinheiro, sucesso, tecto, comida, saúde, objectos com que nos identificamos e que se tornam partes nossas que definem o nosso território. Até criámos determinantes e pronomes possessivos para assegurar que o chão não nos foge. Passamos a amar o que temos, como se o amor não existisse no não ter.

Criar uma vida de fé, confiar que teremos exactamente na medida que precisamos em determinada altura, não é propriamente fácil. A vida é impermanência e nunca sabemos o tempo que nos está destinado para cada conquista que fazemos. Até quando as crises e as perdas aparecem para nos obrigar a mudar, a deixar ir e a passar à fase seguinte da nossa evolução, queremos resgatar, recuperar, mudar a realidade, voltar a ter o que acreditamos que faz parte de nós, ou pior, que somos

Ter leva-nos a reter... para que nunca nos falte; para garantir que nada nos faltará, ignorando os sinais de que tudo o que nos acontece, tudo o que vamos tendo, é passageiro. Nas fases más, de maior dor, a impermanência é esperança - vai passar! Nas fases boas, a impermanência é saudade, é desejo, é querer muito, tanto que dói. Porque a vida dói. Para nos lembrarmos de a sentir. 

Só é dor se for vontade de agarrar. Só é fogo se queimar. Só é felicidade enquanto durar. Só é fogo se queimar... (Amor Electro)

P.S. Às vezes viver é mesmo brincar com o fogo. Mas quem não vai lá pôr a mão?



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