quarta-feira, 2 de novembro de 2016


Não é uma tradição portuguesa, a do Dia das Bruxas, mas também era para não ser o Pai Natal e já o importámos há muito tempo! Neste dia resgatamos as bruxas, os poderes sobrenaturais, a ideia de uma vida que roça a morte, de zombies que nos permitem espreitar o outro lado, o obscuro, o desconhecido, o que tantas vezes negamos mas assumimos que, pelo sim pelo não, o melhor é não explorar muito. Porquê? Porque vai haver sempre o inexplicável, o extrasensorial, o sexto sentido, os "I see dead people" das mais variadas formas porque "eles andem aí"...

Que bruxas são as dos dias de hoje? Que contacto têm as mulheres de hoje com o oculto e com as suas capacidades intuitivas, criativas e curadoras? Que disfarce têm as curandeiras de hoje, as bruxas do bem? E que cara têm as que fazem magia negra sem caldeirão, as que desejam que as suas adversárias sejam eliminadas do mapa e que espalham veneno para o seu espelho continuar a responder que vão ser sempre as mais belas do reino? Serão as selfies, as redes sociais e os likes os novos espelhos? De que forma continua a nossa sociedade a mandar queimar estas capacidades que falam de poderes tão especiais e que, usados de uma forma amorosa - para o Bem -, podem ajudar a transformar dor em amor, o sofrimento em esperança, as guerras em confrontos-que-falem-de-verdade e não de mentiras e egos? 

E por que é o dia das bruxas e não dos bruxos, tendo em conta que o masculino impera no nosso dicionário? Porque estamos a falar de energia feminina, do feminino nas mulheres e do feminino nos homens, exercido de forma poderosa e canalizado para a construção ou para a destruição. A intuição e a criatividade são um bom treino para acordar estas capacidades tantas vezes adormecidas por uma sociedade competitiva e que mimetiza mais do que se reinventa. E, admitamos, às vezes destilar veneno, preferencialmente de forma simbólica, ajuda-nos a expurgar muita da maldade que nos habita como humanidade.

Brinquemos às bruxas e pratiquemos esse poder no sentido da cura, seja ela individual, familiar ou global, seja ela física, mental ou espiritual, porque a cura é como o amor... é só uma!




Festa Halloween Lares da Boa Vontade





quinta-feira, 27 de outubro de 2016


O processo de um doente oncológico acontece. Tem um antes, um durante e um depois. Há experiências que ficam, mudanças que se instalam, memórias que resistem, fantasmas que pairam e marcas que se sobrepõem a tantas outras circunstâncias da vida. Há muitas coisas que são difíceis de entender ou mesmo de captar da parte de quem nos acompanha, as falhas cognitivas, a ansiedade antecipatória, a gestão do impacto na vida real (a que se segue à surreal, durante os tratamentos), o stress pós-traumático, a hipersensibilidade (porque se passou por um processo de sensibilização perante vários estímulos) e, mais difícil, tudo o que não se vê mas que se vive internamente. 

No meu caso, posso dizer que, quando as coisas estão bem, estou perfeitamente segura do caminho que fiz e das coisas em que acredito. Quando a saúde treme, é o caos! Quando duvidamos, ficamos muito mais susceptíveis aos medos, à verdade dos outros, a afastarmo-nos de quem verdadeiramente somos, em qualquer campo da vida, porque a vida... quer assertividade. 

Três anos depois, ainda há algumas coisas que não voltei a fazer depois dos internamentos/tratamentos. Um dos meus truques para lidar com o caos é simplificar, porque a verdade é que esta vida de fazer mil coisas ao mesmo tempo, numa linguagem corriqueira, também queima neurónios a mais e a uma velocidade alucinante! Simplicar levou-me a uma regra-de-1-simples: tratar de um assunto (pendente) por dia / fazer uma caminhada por dia (enquanto não regresso à dança) / fazer um ritual de cura por dia - que inclui agradecer. O resto é bónus. O resto é focar-me no que continua a contribuir para o meu processo de cura mais alargada, para lá da doença, que passa pelo bem-estar e pela capacidade de usufruir da vida e das minhas capacidades em pleno. Se estas capacidades estão hipotecadas, vale a pena reconsiderar, reavaliar e recomeçar. Vale a pena parar e dizer que "Parar é viver!"

Ouvi a Fátima Lopes a falar, a propósito do seu novo site, do conceito de slow living. Venderam-nos essa coisa de fast-tudo mas, quando a vida nos traz violência, dor e terror - sob as mais diversas formas - estas variáveis passam a entrar na contabilidade do que o cérebro tem para processar e por isso o corpo paga e por isso a cabeça perde juízo. Daí que não adiante fazer poucas coisas se o cérebro continuar a mil, assim como não faz mal fazer muitas coisas se o cérebro estiver zen. É a informação que temos para gerir e para processar que conta, venha ela do exterior ou do interior. É a leitura que temos dessa informação que nos faz perspetivá-la como perniciosa ou valiosa. 

Mas - mensagem especial para todos os que me relembram que está tudo na atitude - é a memória celular que sabe a verdade, o que realmente preside no nosso inconsciente e ao qual é preciso atender. 

A semana passada voltei a fazer uma coisa relativamente simples (em comparação com a quantidade de coisas que já fiz na dança muito mais difíceis) e que representou uma conquista neste caminho: voltei a andar de bicicleta. As memórias das parestesias e da neuropatia nas pernas, apesar de ter recuperado completamente, reaparecem em várias situações, como quando desço uma rua, quando uso saltos, quando não consigo manter-me muito tempo em determinadas posições, quando o equilíbrio é desafiado. Por isso tinha medo de me pôr em cima de uma bicicleta outra vez e a minha condição era: chegar com os pés ao chão!

Já passaram três anos! Já não andava de bicicleta há muito mais tempo do que estes três anos, mas o que quero sublinhar é o processo, as coisas que vão sendo despertadas com novas ou renovadas vivências, coisas que pensávamos ultrapassadas e que ainda estão lá, coisas que também nos redirecionam para novos caminhos, provavelmente porque são esses novos caminhos que ansiamos descobrir.

Sinto que é um bom treino "ensaiar" a superação dos medos com atividades mais terra-a-terra, relativamente simples, porque há medos que resistem no tempo e no espaço e que muitas vezes remontam a tempos e espaços que não sabemos precisar. Quando começamos por tarefas simples e nos confrontamos com a irracionalidade dos nossos medos, torna-se material/evidente que as limitações são muito maiores dentro do que fora de nós. Os medos falam-nos de "incapacidades". O amor fala-nos de "capacidades em stand-by". A seu tempo e no meu tempo, o nosso tempo.

Baby steps - são 4 gatos de dois meses, para o caso de alguém estar interessado!


terça-feira, 4 de outubro de 2016


Já meti na cabeça que tenho de escrever todas as minhas ideias e todas as coisas que oiço que me inspiram, mas, de meter na cabeça até isso acontecer, vai uma grande distância. Quero escrever porque a memória já não é o que era e, entretanto, esqueço-me de que tenho de o fazer! Claro! 

Depois é dar por mim a fazer um esforço gigante para me lembrar e perceber que deixo que as minhas ideias caiam, se percam, até nunca mais. Ou até reaparecerem de outras formas. É tão difícil interiorizar verdadeiramente as mudanças e agir de forma adaptativa. 

No outro dia, numa sessão, eu estava eu muito constipada e a tossir muito, quando, a meio de um exercício que propus, uma aluna diz: "Não sei se a dança me faz bem ou não. Ainda não percebi." Eu propus que, sendo assim, o descobríssemos juntos: "Então vamos descobrir!" Não faz mal não saber, porque, mais dia menos dia, a descoberta revela-se. 

Nos últimos minutos, sem me aperceber, deixei de tossir. Na despedida, ela diz: "Já está melhor da constipação!" Fico surpreendida e ela esclarece-me: "Então, estava a tossir muito e já não está! Quer dizer que a dança faz bem!"

E é assim que as coisas se revelam, mais depressa ou mais devagar, em nós e tantas vezes através dos outros que nos assistem no caminho. Sem estarmos à espera. Nem tudo na vida se resolve numa hora - quase nada! - mas ouvia eu hoje na tv que "os milagres não se fazem a prestações"... Há um qualquer momento mágico que marca o ponto de viragem, um clique, um clique que não traz botão, um clique que simplesmente acontece, eventualmente com data e hora marcadas nas estrelas, mas que nunca se vai saber. E é aí que a expressão "quando menos esperares..." ganha verdadeiro sentido. Porque os milagres não se esperam; pedem-se e (a)guardam-se sem cobranças, sem desconfianças, sem pressas.




quarta-feira, 14 de setembro de 2016


"Insecurity is the result of trying to be secure." (Allan Watts)

Há duas fases na vida em que eu sinto que a necessidade de perdoar surge com mais força - ou, simplesmente, surge: quando está tudo bem e quando está tudo mal! (Quando temos esta percepção porque, na prática, o bem e o mal coexistem.)

Talvez por isso seja mais genuíno quando está tudo, não "mais ou menos", mas mais e menos, sem grandes epifanias. O mais e menos não vem do desespero dos dias infernais nem do estado de graça dos dias paradisíacos; vem da normalidade que apazigua com momentos que destabilizam para nos pôr a mexer. O mais e menos não é "mais ou menos", "nem sim nem sopas", "é indiferente"... 

Quando as coisas me correm mal, confesso que sinto que não perdoar é uma verdadeira perda de energia, indiretamente uma perda também de muitas outras coisas que são contaminadas pela falta dessa energia: tempo, saúde, dinheiro, amor... É o mesmo que ficar com o carro atascado numa terra de mágoas. 

Quando as coisas correm bem, vive-se, não se quer saber de merdas. Pronto.

Posto isto, não se resolve nada na urgência. A vida requer paciência. Tenho percebido a importância de dormir desde que desaprendi de dormir. O tempo de dormir é o tempo em que tudo centrifuga por si só. Nem é preciso ir ao estendal que a roupinha já vem seca! Como nova!

Roupa suja é o que fica quando não se cumpre o ciclo da noite e do dia. E há o ímpeto de esvaziar, de fugir, de encarar, de resolver, de libertar, de entender, de controlar, de explicar... "Eles não sabem o que fazem...", dizia Jesus na cruz. É isso que eu sinto muitas vezes: não sei muito do que faço.

Podia ter escolhido para parafrasear o "Sei lá..." da Margarida Rebelo Pinto ou o Sócrates do "Só sei que nada sei.", mas não tinha a parte do "Perdoa-lhes (nos), Senhor..." que é a mais relevante na frase da cruz. Ontem telefonou-me a psicóloga da Liga Portuguesa Contra o Cancro e pergunta-me "É a Ana Rita Cruz??" Não, não sou a Ana Rita Cruz... mas parece! É impressão minha ou sou eu que ando mesmo CARREGADA?


Festival Lumina - Cascais









quinta-feira, 1 de setembro de 2016


Já tornei públicas as minhas insónias e resolvi deambular um bocadinho sobre as mesmas... O título deste post seria mais interessante em espanhol: Buscando el sueño.... porque a palavra sueño significa, ao mesmo tempo, sono e sonho. Entre muitas coisas, acredito que ande num processo de resgate de sonhos perdidos, tanto a nível pessoal como profissional. Assim que voltei à vida "real", agarrei-me às oportunidades que surgiram e agora comecei a fazer escolhas, a dizer não sem o sim à vista, a arriscar, por uma vida mais "decidida". Ainda a procissão vai no adro e o sono em parte incerta. Então pensei: vamos fazer isto ao contrário! A partir de hoje vou sonhar acordada e pôr sonhos no papel, sejam eles mais ou menos estapafúrdios. Vou chamar o sonho para chamar o sono porque o deus do sono, João Pestana, deve estar... de cama! 


quarta-feira, 24 de agosto de 2016




Quando estamos envolvidos no drama das emoções, torna-se difícil apreciar a vida como ela merece ser apreciada: de coração aberto e agradecida. Tenho-me sentido louca desde que deixei de ter noites reparadoras mas reúno aqui, em fotografias, alguns momentos especiais, aqueles que me trazem de volta a minha essência e me ajudam a relembrar de onde venho. Os mergulhos deste ano foram imprescindíveis para energizar. A felicidade mora nos sentidos, mesmo quando estes, por vezes, se entorpecem. Ajudam um banho de mar e pessoas que vos arranquem sorrisos para tudo se tornar mais leve. Porque é. Nós é que complicamos.

Algarve, 2016

segunda-feira, 22 de agosto de 2016


Parte I

Comecei este blog numa fase ascendente, numa fase borboleta, cheia de sonhos e de esperanças para reconquistar a vida, como se estivesse nas minhas mãos provar que era merecedora da oportunidade de reconstruir, re-viver. Disse tantas vezes ao J. quando ele me perguntava: "Mas eu mereço?", na fase da nossa relação em que eu era muito mais entusiasta e ele nem tanto: "Se te está a acontecer, é porque mereces!". Eu sentia que tinha decidido que ia ser feliz e que a minha vontade de o ser valia a dobrar. Eu não queria saber do resto, da indisponibilidade (dele); queria amar e voltar a sonhar. 

Mas re-viver é repetir e repetir era tudo o que eu não queria. Queria criar, recomeçar, fazer diferente. Achava que bastava ser honesta e verdadeira, dia após dia, que tudo ia correr bem porque essa coisa da honestidade num relacionamento não havia de ser uma coisa assim tão difícil... honestidade de sentimentos!

À medida que uma pessoa vai entrando na nossa vida, no nosso espaço vital, essa coisa da honestidade torna-se cada vez mais difícil, porque é onde erguemos muralhas para não expor a vulnerabilidade, a fragilidade. E a maior muralha é a do orgulho, a que nos impede de dizer que a outra pessoa nos desarruma a casa simplesmente por estar ali, com a sua forma diferente de estar e de ser, com os seus medos e os seus sonhos. Nos afecta. Afectivamente nos desembrulha e, tantas vezes nos vemos embrulhados no outro, que nos vamos esquecendo de quem somos... para onde vamos...

Já sentia que o meu espaço de segurança tinha sido posto em causa pelo cancro e pelos internamentos e tratamentos sucessivos, através dos sintomas de ansiedade que foram aparecendo à medida que fui voltando a lidar com os desafios de quem vive, a necessidade de acertar, o medo de falhar, o luto do que tinha sido, a aceitação do que era no momento presente. Só não sabia que isso se ia estender a um relacionamento afetivo até o vivenciar, ano e meio depois do cancro. 

De repente, achas que aprendeste a lidar com o inesperado, com a falta de garantias, com o não saber o que vem a seguir, com o medo, com o lado traiçoeiro da vida, com as coisas menos boas que afinal não são assim tão más e, sobretudo, contigo mesmo, com os teus defeitos e com a tua versão assustada. O que pode ser pior do que o medo da morte? O medo de abandono, o medo da perda, o medo de falhar, o medo de que não gostem de nós? Pfffff... Mas eu descobri que estes medos menores podem ser muito mais assustadores do que o medo da morte porque a morte, ao menos, leva-te; os outros trazem-te para um patamar de exposição e de vulnerabilidade que te retira forças enquanto vives, porque nunca te ensinaram a ver a vulnerabilidade como uma força. 

Ensinaram-nos a competir e, como tal, nunca podes estar vulnerável porque vais perder. Mas competir é olhar para o outro como uma ameaça e viver, permanentemente, em modo luta/fuga. Num relacionamento, isto traduz-se em enfraquecer o outro não lhe dando garantias ou/e mostrar-se forte para vencer, para não perder o controlo, para ficar por cima. Cada um faz isso de formas diferentes, com conteúdos mais ou menos diferentes e resultados idênticos. O medo da morte é menos ameaçador porque é mais fácil de assumir. Todos os outros aparecem disfarçados em jogos de palavras que escondem mais do que mostram, porque é muito mais difícil assumir que se tem medo da entrega, de não ser capaz, de não ser suficiente bom para o outro, de falhar, de não cumprir os desígnios que o amor, um relacionamento ou um projeto de vida supostamente exigem. Não nos ensinam a colaborar, a cooperar, a dar as mãos num caminho aberto, a construir em conjunto... a deixar que a vida se revele. Isso aprende-se com a experiência, com o crescimento, com a maturidade. E desaprende-se também, para voltar a aprender.

Parte II

O meu maior MEDO depois do cancro era o de não conseguir resgatar a minha vida "normal", o que também incluía não ser capaz de cumprir os tais desígnios que ter mais uma pessoinha ao meu lado na montanha-russa poderiam trazer. Isto incluía, não só as expectativas dessa pessoa, mas, principalmente, as minhas. E aqui importa salientar que as expectativas vêm sempre minadas daquilo que a sociedade diz que está certo, do que nos contaram, do que os nossos pais nos mostraram, do que vemos nos filmes, do que os outros dizem e esperam, dos que dizemos para nós próprios. 

Ter um cancro (fazendo os tratamentos convencionais) aos 32 anos pode deixar-te condicionado a vários níveis, pelo menos, até aprenderes a lidar com as limitações como mudanças impulsionadoras de outras coisas e não como barreiras. Que pessoa vai ficar e não se vai assustar com a minha "bagagem"? E as alterações no meu corpo? Será que vou ser capaz? Quem é que me vai compreender? Será que posso ter filhos? E que quero eu depois de tudo isto? 

Conheci o J. numa palestra sobre cancro, pelo que teria a certeza de que a aceitação da doença, à partida, não seria uma questão. Mas, quando temos medo, vamos atrair esses medos e, pior, boicotar a vida de forma a que esses medos se materializem. E o J. veio mesmo mostrar-me todos os meus medos e todas as minhas feridas no campo afectivo. O J. veio espelhar tudo aquilo que eu temia e, mais, veio relembrar-me de coisas antigas, da minha infância, do amor ferido, do amor que exige, do amor que nunca chega, do amor insuficiente, do amor que carece, do amor de gaiola, do amor a medo, do amor a metro, do amor mudo, do amor surdo, do amor sem-abrigo, do amor impossível. Porque, quando temos medo, escolhemos uma pessoa que nos faça passar por tudo aquilo que mais tememos e fazêmo-la passar por aquilo que mais teme; escolhemos uma pessoa que nos obrigue a repetir a história, que nos leve a confirmar as nossas teorias de incapacidade para amar e ser amado. 

Mas o maior inimigo do amor é o julgamento, é pensar sobre ele em vez de o viver, de o sentir. Porque é pensar que nos faz premeditar, calcular ações, julgar atitudes sob o nosso ponto de vista. Tantas vezes julguei as atitudes do J. como não amorosas. Tantas vezes ele premeditou as dele para eu não me sentir assim ou assado. Tantas vezes me inibi de manifestar o que sentia por julgar os meus próprios sentimentos como exagerados ou como projeções dos meus próprios medos. É que nós temos a ilusão de que só o que dizemos é que passa para o outro, mas o que não é dito passa mais e muito mais depressa! O inconfessável assume várias formas que levam o outro a sentir tudo mas sem saber bem o quê; a sentir tudo e a atribuir-lhe um sentido que normalmente é negativo; a sentir tudo e a inventar histórias, mesmo inconscientemente; a sentir tudo e a retribuir em atitudes que só visam o conflito, mesmo involuntariamente.

Aprendi a contentar-me e fui perdendo a minha força. Porquê? Porque fiz sempre um julgamento sobre a forma de amar do J. à luz da minha experiência, à luz do que é expectável, à luz do que é suposto. Dei por mim a cavar um poço de re-sentimentos, sentimentos repetidos que me falavam de insegurança, de não-suficiência, de carência, de medo. Medos antigos atualizados aos 35 anos. Os mesmos. Trazidos pelos 26 anos dele. Os mesmos que habitavam nos meus 26, exacerbados pelas vivências de mais 9 anos, não propriamente idóneos.

Parte III

Por mais cancros que se atravessem na minha frente - e outros tantos males que aterrorizam o mundo - é muito fácil cair na ilusão do controlo. Não controlei a minha vida quando adoeci, não controlei a realidade de forma a que o meu pai não adoecesse ou seguisse o caminho que me parecia correto, não controlei o amor do J. Como é que ele não se apaixona perdidamente por mim? Não é óbvio que é isso que tem de acontecer??? Como é que ele não me diz que tem saudades minhas, que me ama loucamente e que vamos ser muito felizes, contra tudo e contra todos?

Não controlamos nada, muito menos os outros! No últimos ano, adoeci várias vezes e fui-me sentindo esgotada, cansada, muito longe da Rita que iniciou este blog. Longe da criatividade, do amor, da saúde, da energia, da alegria. Os ressentimentos (ou re-sentimentos) foram-se transformando em bichinhos do mal e, à medida que as forças se iam perdendo, os medos iam ganhando força. Repetia muitas vezes que andava a viver a vida dos outros, a substituir colegas a nível profissional e a viver o projeto afectivo do J. Deixei de dormir. Deixei de sonhar. Não por gostar da noite, mas talvez, inconscientemente, por não querer acordar, ver a realidade como ela era e, principalmente, olhar para a pessoa em que me tinha transformado, 3 anos depois do cancro. Olhar e ver as marcas, as feridas, os sustos, os medos. Não adormecer para não ser apanhada outra vez adormecida, desprevenida. Não adormecer para não morrer todos os dias um bocadinho. Não adormecer para controlar, para ter tudo sob controlo. Para o J. não desaparecer. Para me manter viva. 

Cheguei às férias de Verão com uma insónia crónica e com uma alegada pneumonia. Fui panicando e abolindo todas as variáveis que podiam não estar em consonância comigo mesma, trabalho, relacionamento... Sozinha com o J. - ele cada vez mais assustado com a minha fragilidade mas, ainda assim, com uma estoicidade e uma resistência que mostram a coragem que ele consegue ser - atirei-lhe tudo para cima e fugi a sete pés. No sentido figurativo, que eu a correr sou uma mula! O mais importante é a minha saúde, era o que pensava para mim! Nem pensar que vou sacrificar a minha saúde por não estar a viver a MINHA vida! (O mais importante é tudo. Tudo é importante. Desde quando é que o amor é uma ameaça à integridade física e mental?)

A vida é sempre nossa, mesmo quando estamos a ceder aqui e ali, porque vivemos em sociedade e porque também existimos no outro. Por um lado, perder o controlo da minha saúde representa agora o último patamar de desconforto a que me permito. Por outro lado, eu sei que continua a ser o MEDO e a necessidade de controlo a comandar estes acontecimentos que sinto exactamente que não controlo. Só esse medo nos pode levar numa espiral descendente. 

Parte IV

Aprendi com o cancro que não somos o nosso corpo, o nosso trabalho, os nossos relacionamentos, os nossos sentimentos, os nossos pensamentos, as nossas coisas... Nada disto nos define, mas temos a oportunidade de manifestar o nosso potencial em todas estas áreas! O medo leva a que nos afastemos desse potencial. O amor é um salto de fé; é uma confiança na vida que nos traz tudo o que precisamos no momento em que precisamos; é abertura e receptividade; é aceitação e gratidão por todas as lágrimas e por todo o sofrimento que nos veio revelar ainda mais de nós mesmos; é responsabilidade.

Ao eliminar coisas e pessoas da minha vida, a inquietação não só permanece, como aumenta, porque a resposta não está no exterior! O confronto com o que fica é assustador, embora necessário. As memórias desordenadas assaltam o pensamento. As perguntas são mais do que muitas.

O medo afasta-nos da gratidão. A perda, por vezes, aproxima-nos. A fraqueza torna-nos humildes, capazes de pedir ajuda, colo, amor, o amor que não encontramos em nós. 

Regressar a este blog, com uma asa partida, é um ato de gratidão e de amor, mais do que de necessidade, mas também necessidade. Não sei o que transportam as minhas lágrimas, mas sei que o nosso corpo tem esta forma fantástica de se amar a si próprio, limpando e renovando a alma. Quantos dias são necessários até voltar a voar? Os que forem necessários. Quantos dias acalmam a saudade? Os que forem necessários. Quantos dias acalmam o medo? Os que forem necessários. Quantos dias acalmam o amor? Dia nenhum.

Aprendi com o J. a ver o amor nos pormenores, nas pequenas coisas, nas coisas diferentes. Aprendi a ver o amor na presença. Aprendi a ver o amor na diferença. Aprendi a ver o amor nos pequenos passos, nas pequenas conquistas. Aprendi a ver o amor na tristeza. Aprendi a ver o amor nos olhos assustados, nas mãos inquietas. Aprendi que ficar é amar. Aprendi que afastar também é proteger, amar. Aprendi que deixar ir é amar. Caso isto se ensine, quero acreditar que lhe ensinei um bocadinho a abraçar, física e metaforicamente. 

Ninguém nos protege de nós próprios. Amo-te sempre, mesmo quando não consigo. Para sempre. Mas, no todo o sempre, vou conseguir fazer melhor! 



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