sexta-feira, 9 de outubro de 2015

O problema de ser mulher



Uma das várias dimensões que devo recuperar depois de ter sido trucidada pelo comboio-quimioterapia é a da mulher, a par de todas as outras. O corpo fica feito num 8, a menstruação desaparece, as hormonas alteram-se, as emoções embrulham-se num novelo gigante. Já passaram dois anos e ainda estou a falar nisto.

Ter ficado sem as formas do meu corpo como eu as conhecia devido à perda de peso, ter perdido o cabelo e as pestanas que para mim eram parte da minha beleza, ter ficado sem menstruação, não ter tido qualquer relação afectiva e/ou sexual durante muito tempo e ter visto o futuro da minha condição de mulher como eu o esperava hipotecado sem garantias de o recuperar, tudo me fez valorizar isto de ser MULHER. Tudo isto me fez acordar para o adormecimento que existe neste mundo quanto à beleza e magia inerentes a esta condição: a feminina. Neste mundo, leia-se: em muitas mulheres.

Às mulheres é ensinado que a menstruação é uma coisa feia, que com a menstruação vem uma carga de trabalhos, como a dor de cabeça que é ter homens à perna que só nos querem para "uma coisa", uma coisa que também não fica muito bem às mulheres decentes dizer em voz alta: sexo. O ciclo menstrual traz também as variações hormonais e, portanto, a TPM, responsável pela infelicidade que é para mulheres e homens terem de levar com as nossas neuras, como se naquele período fôssemos dominadas por um qualquer espírito mau que não nos pertence. Mas pertence.

Depois da quimioterapia e também depois de ter retomado a minha vida afectiva/sexual - toda uma reiniciação e uma descoberta - já tive 3 infecções urinárias, que me têm feito confrontar com algumas crenças que estão incutidas em nós, mulheres, e que acredito que ainda nos condicionam numa vivência plena e livre. Sim, porque não é só na política, no mundo empresarial ou na família que temos muitas conquistas em curso e por fazer.

A primeira enfermeira que encontro na triagem reage assim à infecção urinária: "ah, é o problema de ser mulher!" Uma amiga diz-me, em tom de brincadeira (mas nas brincadeiras ficam implícitos os preconceitos e as crenças): "Sua maluca!" A minha vizinha: "Ah pois, agora tens um namoradito, isso já se sabe! Nós as mulheres, é assim... por isso é que eu não quero nenhum homem!" E podia continuar por aí fora... De repente, apercebo-me de que não interessa se têm 30 anos ou 60, para as mulheres, sexo e infeções andam de mãos dadas. E os homens fazem-nos mal. É uma pescadinha de rabo na boca. Já não basta eles só nos quererem para essa coisa, essa coisa ainda nos põe doentes.

Claro que eu acho que as mulheres já fizeram um longo caminho em relação à liberdade sexual e ao direito ao prazer sem culpa, mas, minhas amigas - e este é mesmo um post de amiga -, ainda há muito a fazer! E não passa por nos despirmos publicamente ou termos os parceiros que quisermos para provar seja o que for, muito embora sejamos livres de fazer essa escolha. A verdade é que eu acredito que o nosso corpo espelha tudo isto que ainda está no inconsciente coletivo e de cada uma e um.

Depois de ter perdido a lubrificação durante os tratamentos, senti saudades de sentir o sangue descer e percebi, quando a menstruação voltou, 4 meses depois de terminar a quimio, que a sensação é semelhante à da lubrificação decorrente da excitação sexual. É literalmente um terreno fértil que representa a nossa capacidade para criar, parir e celebrar a vida. Sangue é vida.

Não tomo a pílula porque quero estar em contacto com todas as fases do ciclo, com a riqueza de emoções que está em mim e com as mudanças que ainda se verificam no meu corpo que ainda não estabilizou. Quero conectar-me com os ciclos da natureza e com o meu potencial criativo e criador, que, numa mulher, não passa só por ter filhos. Quero usufruir desta fase o tempo que ainda me estiver destinado a vivê-la antes de chegar a menopausa, outra fase igualmente rica mas que não estava pronta para acolher aos 30.

Às vezes gostava de poder ter uma filha só para lhe poder ensinar coisas como estas:

- os homens não são bichos maus que nos querem comer e que ainda por cima nos causam infecções, se nós soubermos respeitar-nos e mostrar-lhes como somos por inteiro; eles estão muitas vezes perdidos na tarefa de nos conhecer, porque muitas vezes também queremos esconder a nossa vulnerabilidade e necessidades - está muito mais valorizado socialmente ser forte e impermeável do que ser assumir fragilidades e sensibilidade; muitas vezes só vêm partes nossas porque também não assumimos as outras.

- mostrar-nos por inteiro implica reconhecer as nossas emoções como parte da nossa verdade e a TPM só mostra muitas vezes aquilo que tentamos esconder o resto do mês;

- ser mulher não é um problema, em contexto nenhum, nem no meio laboral, nem na vida pessoal; ser mulher enriquece qualquer meio onde nos integremos, se assumirmos o que nos diferencia em vez de nos tentarmos equiparar aos homens, se deixarmos de competir com os homens e umas com as outras;

- homens e mulheres têm muito mais a ganhar se se aproximarem em vez de andarem sempre em guerras de poder; é da sua união que nasce a vida, que se dá à luz, que se dá a evolução da espécie;

- as mulheres são muito mais fortes unidas, não contra alguma coisa ou alguém, mas juntas nas coisas que muitas vezes guardam para si próprias, medos, inseguranças, dúvidas e dores. Vão descobrir que não estão sozinhas e libertar-se da necessidade de perfeição;

- a menstruação e o ciclo menstrual são a prova de que o corpo é mágico, a vida é cíclica e as oportunidades de nascer/morrer/renascer simbolicamente numa mesma vida são múltiplas. Durante a menstruação o corpo renova-se e tudo recomeça. Tudo se transforma.

- o sexo é uma coisa boa, permitida e é suposto ser prazer para todas as partes intervenientes, com liberdade consciente e informada; com a liberdade sexual, o amor talvez tenha vindo a perder terreno, porque podemos decidir pelo sexo sem alma e separar em gavetas os tipos de relacionamento que escolhemos ter com determinadas pessoas, mas sexo com encontro de corpos e almas, sem separação entre corpo, emoções e espírito, constitui a materialização do poder que duas pessoas têm quando literalmente se juntam, se fundem e se perdem/encontram uma na outra: o poder do amor, o do amor que cura. E acredito que o mundo de hoje precisa muito mais disto, de que se faça amor, de todas as formas, orientações, convicções, fetiches e feitios; 

- se não houver respeito, não é amor;

- ser mulher é poder gerar vida, dar colo, ser frágil, ser forte, ser cheia, ser histérica, ser lunática, ser bipolar, ser infantil, ser maternal, ser sensual, ser amiga, ser fodida, ser bruxa, ser especial. é embarcar num desafio e ser superação.

Se um dia tiver um filho, também lhe vou ensinar tudo isto e ainda que o seu papel é muito importante neste mundo e no mundo de uma mulher que o escolha como parceiro de jornada, seja por um dia, um ano ou uma vida.



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