sábado, 26 de outubro de 2013

Carta ao Sou-Doutor #2

Caro Sou-Doutor,

Muito se fala de conhecimento e resultados científicos, de protocolos e receitas previstas para determinadas situações, determinação essa que advém de muita literatura e anos de prática e ensaios clínicos. Só se acredita no que está provado cientificamente. O estar provado cientificamente deixa-nos tranquilos ou desesperados, consoante do que se trata. É mais seguro, porque a ciência confirma. Está provado cientificamente, não se duvida.

Ora ainda me lembro de algumas coisas da cadeira de epistemologia. Na altura não era das mais entusiasmantes, mas hoje agradeço. O método científico pressupõe a existência de uma hipótese que é testada num ambiente controlado, com uma determinada amostra, e que depois é corroborada ou refutada, para mais tarde se generalizar a uma determinada população ou colocar uma nova hipótese. E, segundo o que aprendi, as hipóteses mais valiosas, as que fazem o conhecimento avançar, não são as que são confirmadas, mas, sim, as que são contrariadas, pois essas é que nos levam a continuar a questionar e, aqui, parece-me que as questões valem mais do que as respostas, que, de alguma forma, nos fecham para outras perspectivas.

Assim, aprendi na faculdade a ser muito cientista na vida pessoal e profissional. Tenho uma verdade, a minha hipótese, escolho um determinado caminho e, caso esta não me leve aos resultados esperados, questiono e coloco novas hipóteses, que me ajudem a evoluir e a saltar de patamar. E não há verdadeiro conhecimento que não passe pela experiência. Mudo de paradigma se for o caso. E é desejável que o faça de tempos a tempos, pois significa que não parei... no tempo.

Por isso, Sou-Doutor, não se admire se não me preocupa o facto de não ter cumprido o protocolo de tratamentos como vem nos seus livros, por o meu corpo ter tido respostas não esperadas. Significa apenas que temos de reavaliar a situação e colocar novas hipóteses, em vez de fazer tudo para que as respostas existentes encaixem à força no sujeito em causa, que por acaso sou eu. Sei que é isso que faz, adaptar o conhecimento que traz à realidade que se lhe apresenta, mas sinto que fica muito desorientado porque não fiz o caminho todo certinho, como vem nos livros, e isso quererá dizer que a minha hipótese de cura é menor do que a do outro doente que foi um sujeito, ou melhor, um objecto mais bem comportado e corroborador dos estudos já existentes. Será?

Não há nenhuma ironia na forma como me refiro a mim como objecto de estudo porque temos de ser rigorosos e estamos a falar de ciência. Eu também sou "Sou-Doutora", como lhe disse na primeira carta que lhe escrevi, e também tenho objectos que se confundem com o sujeito e ponho hipóteses e volto a pôr e tiro conclusões... E também faço ciência e estudos bastante científicos, mas nos domínios inter e intra pessoais. É assim que cresço e evoluo como pessoa.

Esta carta é para o tranquilizar. Por que terei menos hipóteses de cura do que quem cumpre tudo o que vem nos livros? Ciência para mim não é fechar o círculo, ser rigoroso não é fechar as gavetas e o sucesso não está em seguir uma e única linha. Enquanto se comprovou cientificamente, já nasceram mais não sei quantas pessoas no mundo e outras tantas morreram. Desenganem-se os cépticos que usam essa ciência de bolso como bóia de salvação, porque ciência não pode ser apenas "ver para crer", até porque começa sempre com um "crer para ver"...

Preocupa-me a ciência praticada por cépticos, que usam a certeza porque não suportam a dúvida, em vez de usarem a certeza por convicção. Há verdadeira ciência sem dúvida? Há verdadeira ciência sem fé? Qual é o valor científico da esperança? Duvido que alguém sobreviva quando lhe é subtraída à vida a esperança, a maior parte das vezes por força de dados científicos. Se sobrevivem, é milagre. Para mim, se sobrevivem, é porque mantêm a esperança e as suas convicções, apesar de todas as evidências, retiradas por outros sujeitos, com outros objectos, noutros "aqui e agora".

O Sou-Doutor aparentemente não é crente, porque crença não é científica e ciência não é religião. Mas eu acho que é, porque ninguém escolhe ser herói e salvar vidas sem um bocadinho de fé. E coragem. Só lhe peço que modere a utilização de expressões como "não há hipótese...", "não há nada a fazer" e outras semelhantes, porque há doentes que seguem a sua religião. Mas sobre religião falarei com o Sr. Padre, o pai nosso que está na terra.

Sem outro assunto de momento,
Rita Nobre Luz, cientista por convicção (e definição)


imagem retirada do wikipédia


Carta ao Sou-Doutor #1

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