quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Põe e Diz-Põe #2


Que voz te disse que aquele seria o momento para interromper (os tratamentos convencionais)? D.G.

Esta voz pode assumir várias formas, desde uma sensação, a  um pensamento, uma imagem. O nosso inconsciente - ou o sexto sentido - pode manifestar-se de várias maneiras. Esta voz representa o que no fundo acredito ser o melhor para mim e o que sinto que o meu corpo necessita e pede. Não é muito fácil chegar lá, porque não somos treinados a ter este diálogo interno, mas penso que todos podemos identificar situações em que queremos tomar decisões racionais que entram em conflito com o que de facto sentimos. E quando perdemos noites de sono com isso, se calhar, convém ouvir porque há uma sabedoria intuitiva de onde podemos tirar todas as respostas de que necessitamos.

A minha decisão está relacionada com a minha formação profissional, as pesquisas e leituras que fiz sobre o assunto, toda a informação disponibilizada pelos técnicos de saúde que consultei, as coisas que vi e tudo o que vivi, tanto no processo de doença como até lá e sobretudo a relação que fui construindo com o meu corpo. Portanto essa "voz" não me surge do Além, mas do Amén àquela que é a minha experiência, que não é a do outro, embora me tenha ajudado o testemunho dos outros. E muito.

A dificuldade está na identificação dessa voz como tua porque há muitas vozes dentro da nossa cabeça, a maior parte constituem ecos do discurso de todos os outros que andam à nossa volta, tanto no momento presente como sob a forma de crenças que se foram sedimentando e que resultam das formatações familiar, educacional e social. Ainda há a voz das emoções e, principalmente, a voz do medo! Ora, este cocktail é explosivo e chegamos ao ponto em que já não sabemos o que fazer... ou somos impulsivos e agimos com uma base pseudo-racional que se torna perigosa quando é mais emocional do que outra coisa. Por exemplo, eu posso tomar a decisão racional de seguir o que diz o médico, mesmo que não esteja de acordo com a minha experiência, porque sinto medo. Ora eu decidi que a minha escolha não haveria de ser emocional e por isso vivi as emoções que tinha de viver, queimei os neurónios que tinha de queimar e esperei que estas vozes se calassem para ouvir a outra, a verdadeira, a que vem do coração, lá do fundo, e que acredito ser o resultado do que sou (repito que o que sou também inclui fundamentação teórico-prática e tem tradução material).

O medo tem uma voz enoooorme, faz muito barulho e não te deixa ouvir mais nada. Deixa-o falar, ouve e depois deixa-o ir. Investiga e procura as respostas que existem e que estão de acordo com o que és e sentes. Podemos ser surpreendidos pela positiva quando descobrimos que já existe muito trabalho desenvolvido noutros sentidos que não são o do paradigma vigente e que resultou da experiência de pessoas que não encontraram as respostas de que necessitavam nesse mesmo paradigma e desenvolveram outro, muitos deles médicos. E hoje acredito que somos resultado do que "sentimos", mas não falo de emoções. Falo de intuição. E para mim esta é que é a decisão coerente e racional. Intuição e conhecimento. As emoções só devem ser valorizadas no sentido em que podem traduzir-se no corpo e concorrer para melhorar ou piorar a situação de saúde. E isto não é "psicológico" no sentido em que é "da imaginação". Existe mesmo uma tradução química e fisiológica para todo esse mundo do psicológico e imaginário e investigação científica nesse sentido, embora oiça recorrentemente o "não está provado cientificamente mas..." como quem diz "não acredito em bruxas, mas que las hay hay". Se calhar não estão a procurar.

Para não ficarmos apenas pela conversa, uma vez que esta é resultado da minha experiência, vou tentar concretizar.


Quando é que eu soube? Fui tendo sinais. O ponto de viragem acho que foi no meu dia de anos, 3 ou 4 dias depois de sair do hospital do último internamento! E foi depois de passar o meu primeiro mês fora do hospital! Foi como se tivesse saído do filme e a minha energia voltasse a mim, com cada vez mais força! Tive de me distanciar! Comecei a sentir e a dizer aos outros "Sinto-me curada. O meu corpo ainda está aqui, mas a minha cabeça já está lá à frente!" Isto foi crescendo dentro de mim. Ainda fiz um tratamento em ambulatório, mas já não me sentia doente, embora me encontrasse ainda muito debilitada. Continuava pendente a decisão do transplante porque estavam à procura de dador. Depois houve um dia, de consulta, em que atravessei um corredor do hospital, senti uma coisa no estômago e a palavra "não" na minha cabeça, como se o caminho já não fosse por ali. Desde que saí do hospital até tomar a decisão de não completar os tratamentos e não fazer o transplante, passaram-se 2 meses, porque dentro de mim não foi pacífico. Tinha mais medo de "ir contra o sistema", do confronto, do que propriamente do risco das minhas escolhas!!! Percebi, quando me foi dito que havia um dador, que a vida me tinha posto numa encruzilhada para finalmente me aceitar como sou, com as minhas convicções, que não são as do sistema em vigor. E percebi que não havia outra resposta senão a que estava de acordo com o que sou, sinto e conheço. Tinha duas opções: ou quimioterapia ou quimio+transplante. Ainda foi preciso a médica falar dos 9 meses de vida, da gravidade da minha doença e da inevitabilidade do transplante e deixar-me de rastos, do tamanho de uma formiga, para me zangar com aquilo tudo e perceber que não tinha de me zangar, mas sim que a vida me estava a obrigar a decidir e não a encontrar um compromisso entre os dois mundos só para fugir ao confronto. Nada daquilo me fazia já sentido e olhava para tudo à volta com o sentimento de que já tinha cumprido o meu caminho ali. Já nem conseguia visualizar-me mais ali. Também decidi que não queria uma medicina do medo, quando entrei lá bem e saí de lá assustada. Senti que aquilo não era saúde. Na semana seguinte, disse à médica que a minha hipótese era a terceira, não só não ia fazer o transplante, como não ia fazer mais nenhum tratamento, porque, uma vez em remissão e tendo em conta o estado em que se encontrava o meu corpo, preferia começar um trabalho de reconstrução em vez de continuar a destruir e a combater. O combate não me fazia sentido, porque não sentia o cancro como inimigo. Surpresa das surpresas, ela aceitou a minha decisão, respeitou e disse que queria continuar a acompanhar-me. No fundo o meu medo era o de abandono: se eu não faço o que ela quer, ela abandona-me! e isso não aconteceu! E uma coisa era certa, eu não estava a põr em causa o trabalho dela, mas estava a agir de acordo com o meu, no papel de doente.

Antes de comunicar a minha decisão, andei uma semana a "bater mal". "Por que não sou como a maioria das pessoas? Por que não aceito o que me dizem?" No fundo eu sabia o que tinha de fazer, o tal "guia interno" de que falas no teu email, mas faltava-me a coragem. E se? E se? Depois percebi que só havia uma hipótese: a minha. Se tiver uma recaída, logo sentirei o que é melhor para mim e agirei em consonância com isso. Estes 6 meses fora do hospital são meus, já ninguém mos tira.

Que voz me disse? A minha, mas a que vem lá do fundinho do coração.





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