É muito mais simples explicar aos mais pequenos que o mundo está dividido em bons e maus. Para o seu cérebro é uma informação fácil de arrumar e o mais importante é que as figuras parentais estejam do lado dos bons e que lhes garantam proteção contra os maus. E é isso que são os pais, heróis de trazer por casa. Crescemos e vamos percebendo que as coisas são bastante mais complexas, as pessoas boas também fazem coisas más e as pessoas más - ou que fizeram coisas feias - podem ter sido as pessoas mais simpáticas para o vizinho do lado. No mundo dos adultos, portanto, o mundo já não se divide em bons e maus ou já não era esperado que assim fosse. É aqui que os heróis de trazer por casa às vezes se transformam nos maus da fita, ou, tão simplesmente, humanos, dependendo do nível de pensamento de que estamos a falar, mais infantil ou mais diferenciado.
Preocupa-me que o mundo fique cada vez mais dividido entre bons e maus, porque, ao categorizar desta forma, inevitavelmente, vamos cair num lado ou no outro, vamos posicionar-nos dentro de uma equipa ou outra, contra o adversário a agredir ou a combater. Os maus querem destruir os bons e os bons querem destruir os maus.
E estar de um lado ou do outro tem as suas consequências. Uma pessoa que se percepciona a ela própria como má, seja pelas suas ações, pelas suas características ou pela forma como os outros a tratam, fica privada de conhecer e contactar com as suas coisas boas, o que a pode deixar num caminho cuja saída é destrutiva, para si própria ou para o outro. Uma pessoa que se assume só como boa corre o risco de pôr tudo o que é mau no exterior, nos outros, e não assumir as suas coisas que por vezes também têm consequências negativas, para si e para os outros.
As crianças aprendem a chamar maus aos que fazem coisas más e bons aos que fazem coisas boas, mas, na verdade, parece-me bem ajudá-las a perceberem em si as suas coisas boas, para além de ações que tenham tido e que tenham tido consequências negativas, bem como ajudá-las a tomarem consciência das consequências negativas de algumas ações, porque lhes ensina que o que são e o que fazem tem impacto no mundo que as rodeia. Quem aprende isto, aprende na sua relação consigo mesmo, com o outro e com o ambiente. Quanto mais polarizada for a nossa ideia das pessoas e do mundo, maior a probabilidade de o mundo se dividir em partes e, no futuro, em pedacinhos difíceis de reconstituir. Para algumas pessoas, o mundo já está tão dividido dentro de si que já não há retorno.
Prefiro pôr as coisas aqui em bem e mal, não no sentido da moral mas no sentido, não só da intenção, como de uma ação que comporta uma contribuição. De que forma queremos contribuir? Para o nosso bem-estar, para a saúde do nosso relacionamento, para a felicidade dos nossos, para a paz no mundo? De que forma conciliamos a pegada positiva que queremos deixar - caso queiramos - com as necessidades primárias do nosso ego, de poder, controlo e competição pela sobrevivência, esteja esta traduzida em dinheiro, comida, recursos, terra, beleza, mulheres, homens, força ou razão?
Na altura em que os concursos de beleza estavam na moda, no formato Miss Universo, Mundo ou de cada país, as meninas bonitas foram desvalorizadas na sua vontade de acabar com a fome no mundo, as guerras e as desigualdades. Na verdade, o bem tem um lado estético que faz a diferença no mundo. Os monstros são feios, o medo, se tivesse cara, seria horrenda - ou talvez se risse macabramente disto tudo - e a destruição fere os olhos. Elas, as misses, com a sua beleza, contribuíam para um mundo mais bonito e queriam contribuir com uma coisa tão fútil como a paz, numa época em que ser bonito não era compatível com inteligência. Se és burra, pelo menos, diz que vais acabar com a fome no mundo! E eis que o mundo se encontra na unidade de cuidados intensivos, a precisar de resgatar e juntar uma brigada de misses de todos os países! Eu própria me sinto um bocadinho Miss em campanha pela paz no mundo!
O ser humano é capaz de matar, odiar, agredir, destruir e morrer. É verdade. Temos um lado sarcástico, invejoso, mordaz e macabro. No dia em que acabar a guerra no mundo, teremos conquistado a imortalidade. Enquanto formos capazes de morrer, seremos capazes de matar. Mas, enquanto formos capazes de viver, seremos capazes de amar.
As crianças contactam com todos estes lados do ser humano nas histórias de super-heróis e vilões, partes de si próprias e dos seus, personificadas e investidas de efeitos especiais e peripécias. É assumindo todos estes lados que vamos estar mais protegidos de deixar que o mal domine sobre o bem. Enquanto o mal for partir um brinquedo do amiguinho, estamos nós bem - e o amiguinho mal. Enquanto o mal for falado, representado, discutido e brincado, em jogos e contextos seguros, estamos nós bem. Enquanto o mal for ignorado e posto fora de nós, vamos continuar a combater e numa guerra sem fim.
Uma guerra é sempre mundial. Dêem armas de brincar aos mais pequenos, deixem-nos brincar às lutas, ensinem-lhes as guerras de "faz-de-conta" para que continuem a matar de forma simbólica/metafórica quando crescerem e não precisarem de armas verdadeiras para matar os seus fantasmas em forma de pessoas.
Perante uma pessoa má, uma pessoa que tenha perdido qualquer capacidade empática e apetência para o amor ou cuja forma de estar não seja compatível com a existência de seres e de formas de pensamento diferentes no mundo, não tenho a ilusão de que não lhe devesse dar um tiro nos cornos para garantir a minha sobrevivência e a dos meus. Se me pisarem os calos, emerge a cabra que mora dentro de mim. Se me magoarem, rogo pragas e manifesta-se a minha bruxinha má. Se me derem um estalo, levam outro. No meu mundinho. Em pequenino. No imediato.
Acontece que, cada vez mais, penso em grande e tenho uma visão mais ampla. Estamos todos no mesmo barco. E, se afundar, não vem o Noé salvar as crianças - as que não dêem pontapés nos amiguinhos e não se portem mal nas aulas, os pequenos "terroristas"(!) - e os animais, os domésticos, porque os selvagens matam pessoas! Ou talvez seja disso que o mundo está a precisar... De uma arca que salve os bons. Não sei é onde é que vão viver...
Lutei sete meses contra um cancro. Desisti da guerra porque percebi que estava a utilizar armas de destruição massiva dentro de mim e, na medida em que o inimigo estaria dentro do meu corpo, se o continuasse a atacar, eu poderia não sobreviver. Atacar o mal era também atacar-me a mim. É o problema das guerras: é preciso sobreviver a elas. No limite, voltaria a fazê-lo, se o medo tomasse conta de mim, mas não numa primeira instância. Sei que há coisas más em mim, toxinas, mágoas, medos e afins, mas as coisas boas são maiores. E rezo para que, no mundo, as coisas boas sejam sempre maiores.
Olho para Paris e tenho orgulho nos parisienses que me fazem acreditar nos seus valores porque se juntam em nome dos mesmos. A França inspirou "A Portuguesa" e eu rezo para que, contra os canhões, marchemos todos pela liberdade, a igualdade e a fraternidade. Não me orgulho do massacre na Síria que nada tem de fraterno, mas espero que o mundo se encaminhe no sentido da criatividade e da racionalidade, juntas, na solução de conflitos. E que as flores, as velas, os abraços, a solidariedade, o sentir conjunto sejam mais massivos do que as armas. É a realidade. Dualidade. Emergências. Esperança.
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