"Deixei de existir..." (J., 70 anos)
A herança do "Penso, logo existo..." que se transformou num "Produzo, logo existo..." é muito pesada... De repente não se existe quando não se trabalha, não se enchem os dias todos com tarefas e afazeres com prazos e objetivos, de repente é inútil simplesmente ser. É assustador simplesmente ser. Eu estive lá e sei como os papéis que representamos nesta vida se transformam na nossa identidade e que a identidade devia estar para lá das máscaras que vestimos para que continue a existir quando a capa cai.
A reforma, o desemprego e as baixas profissionais deviam ser oportunidades para usufruir do outro lado da vida, a morte do "fazer" para a vida do "prazer", o despertar dos sentidos e o sentido da existência na sua origem, que começa para todos nós no toque, na apreensão, no morder, na sucção, no choro e no sorriso, no gatinhar, no cair, no levantar... no berro!
Eu não dei o berro quando nasci, já vinha meia grogue, já vinha meia. Comecei logo a aprender a lidar com o vazio. Como se existe pela metade? Curiosamente acho que assumi sempre que a minha metade não anda por aí porque, das duas duas: se existe, é inalcançável e, a existir, não é preciso alcançar porque ficou em mim, na minha pele. Curiosamente quando me ligo a alguém, ando com essa pessoa, não no coração, mas precisamente na pele. A pele, o maior órgão do nosso corpo. É mesmo muito espaço para entregar a alguém mas não há amor sem o corpo inteiro.
Hoje acho que o Descartes deveria saber que pensar não define a existência mas amar sim. Pensar é fundamental para atribuir significado às experiências, mas amar é viver as próprias experiências. Começa antes e termina depois. "Amo, logo existo." devia ser este o mote para a 'nova era'.
Ama quem és, abraça os teus defeitos, olha nos olhos de quem está triste, sorri a quem está zangado. O amor não se poupa e não nos poupa. Amor é querer ver um sorriso de quem se ama, amor é não querer menos do que um sorriso no espelho. Viver pela metade é desamor. Viver a meio gás é medo. Amar aos bocadinhos é batota. Mas não saber amar também é humano. Amar é descobrir.
O amor é a única forma de nos permitirmos querer continuar quando o mundo desaba, é a força motriz da existência, a par da alegria. O amor tem de ser visceral e espiritual, ao mesmo tempo, o encontro do corpo com a alma. E, no vazio da existência, nos tempos mortos da vida, descobrimos afinal se o amor e a capacidade de amar se definharam nos afazeres, nos outros, nas coisas, no que nos aconteceu. E não faz mal se definhou porque o amor pode morrer na cruz mas ressuscita ao terceiro dia, por um novo eu, uma nova oportunidade, pela simples esperança que existirá enquanto houver vida e pelo tão simples direito ao berro quando se renasce. Seja em que tempo da vida for.
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